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quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A CONTRIBUIÇÃO DE FREUD PARA O ESCLARECIMENTO DO FENÔMENO POLÍTICO

 5 reflexões que vão te introduzir ao pensamento de Freud - Revista Galileu  | Ciência

A CONTRIBUIÇÃO DE FREUD PARA O ESCLARECIMENTO DO FENÔMENO POLÍTICO

 

MAURÍCIO TRAGTENBERG *

 

 

Não pretendemos abordar as relações entre Psicanálise e Política, mas, a contribuição de Freud para o esclarecimento do fenômeno político. Isso significa limitarmo-nos a seu universo discursivo, sem ampliar a análise do político, abrangendo as várias correntes psicanalíticas, de Reich a Adorno, de Guattari a Lacan. A volta de Freud significa a preocupação em compreender a sua contribuição específica ao estudo do fenômeno político, sua pertinência e atualidade.

 

Durante mais ou menos um século, o estudo do “político” centrou-se nas instituições. Fourier esperava que, através delas, o vício individual se transformasse em virtude social.

 

A preocupação de Freud com o “social” se acentua após o impacto da Primeira Guerra. Nos seus dois ensaios a respeito, um escrito em 1915 e outro em 1922, procurou ele mostrar a hipocrisia da sociedade moderna, a coerção social funcionando e o caráter primário das tendências agressivas. Impressionado, como Max Weber, com o empobrecimento da vida, ele valoriza, inicialmente, a guerra como alternativa ao conceito convencional de morte, porém, a guerra condicionou seu interesse o estudo da agressão, como o câncer que o vitimaria, levou-o a aprofundar o conceito de “instinto de morte”.

 

Admitindo que o nosso inconsciente mata, mesmo por motivos insignificantes, vê na eclosão da guerra uma prova disso. Os homens não desceram tão baixo por ocasião da guerra, dizia ele, porque nunca estiveram tão alto como pensavam achar-se. assim, o homem renuncia a seus instintos agressivos substituindo-os pelas agressões estatais, o Estado proíbe ao indivíduo infrações, não porque queira aboli-las, mas sim, para monopolizá-las.

 

A autenticidade e espontaneidade podem andar vinculadas ao instinto da morte. Pode a pessoa “autenticamente” matar alguém e “espontaneamente” apertar o botão que despeja centenas de bombas, espalhando a morte. Embora admitisse a existência de soluções culturais; sugere a existência de uma autoridade universal para julgar os conflitos de interesse entre as nações.

 

A sua admissão da existência de uma agressividade “inata” não o impediu de considerar os meios indiretos de satisfação. O ódio básico em Freud, é fundido com as tendências sociais na medida em que o indivíduo amadurece.

 

Hobbes e Freud

 

Como Burke, admite a Freud a positividade das restrições sociais que nos livram d a escravidão às paixões. Enquanto, para Hobbes, o homem natural é egoísta, em Freud também o é, com a diferença de que ele tem necessidade social.

 

Enquanto, para Hobbes, o homem segue a lei da astúcia e da força, Freud reconhece a sua existência, porém, afirma, concomitantemente, a existência do amor e da autoridade, daí a ambivalência. A figura do contrato social, em Hobbes, Locke e Rousseau, era para explicar a legitimidade original da sociedade capitalista. Para Hobbes, o pacto social funda-se na existência do medo, que torna o homem prudente.

 

Para Freud, a sociedade política corresponde ao desejo irracional do homem em restaurar a autoridade; com a morte do pai primitivo, surge no homem a “nostalgia do pai”. Para ele, o governo não surge de um contrato social, mas, de uma resposta contrarrevolucionária , que emerge após a queda do governo patriarcal e representa o desejo majoritário dos cidadãos-irmãos, não é uma manifestação de prudência do grupo. Os mitos do contrato social, no universo psicanalítico, podem ser vistos como reafirmação da vontade do pai acima dos impulsos rebeldes dos filhos.

 

O contrato social, na medida em que significa o ingresso da sociedade na organização política histórica, representa a aceitação da derrota da maioria, ela que, medi ante a restrição exogâmica de novas conquistas sociais, ninguém pode alcançar outra vez o supremo poder do pai, embora todos tivessem lutado para isso. Na forma de horda, família ou governo, para Freud o que existe é o controle da liberdade de ação. A existência da lei mostra a força dos desejos ocultos, a existência de uma necessidade interna, que a consciência desconhece. Daí Freud reconhecer que o desejo funda a necessidade da lei. O caráter complexo dos desejos explica a complexidade das interdições sociais.

 

As proibições

 

Freud relaciona as proibições auto impostas, mediante as quais os neuróticos controlam os impulsos proibidos com as complicações rituais, mediante as quais os povos primitivos se defendem da “desordem”, os sentimentos libertários que possam surgir originam autocontroles compensadores, e esses, por sua vez, a renúncia a uma posse ou liberdade entendida como repressão e objetivada como tabu ou lei. A ambivalência e o tabu significam a existência de uma dialética que oscila entre repressão e rebelião; essa leva a nova repressão. A luta entre a lei e o impulso só pode ser sintetizada pelo “ego”. A liberdade procurada é a liberdade para se tornar um amo. Os impulsos conscientes de rebelião, para Freud, originam-se na inveja. O desejo de poder é contagiante, todos querem ser reis. O excessivo respeito, a cortesia, e as regras estritas de etiqueta em relação ao “chefe” são derivadas do “medo de tocar” do primitivo, segundo Freud, medo de contatar pessoas pelas quais sente hostilidade inconsciente, sejam chefes, mortos ou recém-nascidos. Para ele, todos os gestos de submissão são ambivalentes, daí o respeito e o afeto esconderem hostilidade inconsciente. Freud venera quem estabelece regras como Moisés e simpatiza com que as contraria, como Ricardo III. Todos nós sofremos alguma ferida narcisista, daí a nossa simpatia para com ele.

 

Ao produzir Psicologia das Massas e Análise do Eu, Freud estava abandonando o evolucionismo linear de Totem e Tabu e a preocupação pelas origens pré-históricas cedia lugar à análise contemporânea. Essa preocupação transparece no seu texto Novas Contribuições à Psicanálise, onde relata seu conhecimento da obra de Marx. Embora reconhecendo que as pesquisas de Marx sobre a estrutura econômica da sociedade e a influência das distintas formas de economia sobre a vida humana impuseram-se com indiscutível autoridade, mantém seu ponto de vista, segundo o qual as diferenças sociais se originaram por diferenças raciais. Assim, para Freud, fatores psicológicos, como o excesso de tendências agressivas constitucionais, a coerência organizatória da horda e a posse de armas, decidiram a vitória; os vencedores se transformaram em senhores e os vencidos em escravos; isso exclui o domínio exclusivo dos fatores econômicos. Na sua crítica a Marx, partia ele do conceito de ato econômico como “ato puro”, difundido pela Escola Clássica.

 

Freud não só se preocupava com a herança de Marx, como, também, com o fenômeno da ascensão das massas após a revolução industrial, para tanto, fundado em Gustavo Le Bon, a quem corrigia em algumas particularidades, procurava estudar as vinculações da massa com o líder. Para Freud, a relação política básica consistia numa relação erótica, da massa com a autoridade. Para ele, a autoridade sempre existe personificada. A horda supõe um chefe, o hipnotizado, um hipnotizador, o amor, u m objeto, a massa, um líder. Para ele a condição de líder exige que este se aparte de seus subordinados e, ao mesmo tempo, evite que eles o abandonem. O líder atua como um “centro” para organizar vidas que procuram um sentido. Porém, situações de pânico e desorganização social podem levar a massa a reorientar-se em torno de novos líderes. Para Freud, o líder toma a forma de pai perseguidor, como o pai primitivo, ou perseguido como Cristo. O líder aparece como figura segura de si, com poucos vínculos libidinosos; a sua vontade é reforçada pela dos outros. Freud vê toda a atividade política, sem distinção, como influenciada pela autoridade. Segundo Freud, isso dá um sentido permanente às manifestações de autoridade.

 

A psicologia

 

Sua psicologia tem implicações conservadoras no caso. Assim, na História não há acontecimentos qualitativamente diferenciados. O líder na figura de pai e seus seguidores, enquanto filhos, tornam a luta política uma luta geracional. Na ambivalência, as mudanças sociais se tornam recorrências e as relações sociais só têm sentido pelas necessidades psicológicas que preenchem. A crítica social é desvalorizada, na medida em que é vista como manifestação da ambivalência geral das emoções. A desconfiança dos governados ante o poder não se dá por uma visão nacional de suas vitórias e fracassos, mas como expressão de sentimentos hostis. Freud vincula o fenômeno político aos delírios paranoicos , no exagero da importância de uma pessoa. Partir da participação libidinal é, para ele, decifrar a genética do poder. Totem e Tabu e Psicologia das Massas mantém uma visão liberal clássica: o indivíduo ante o Estado, sem ninguém como permeio, nenhum grupo intermediário. Para Freud, o governante tem verdadeiro poder mediante atribuição ilusória de seus partidários.

 

A imagem freudiana do pai, como modelo de autoridade, vincula-se diretamente à ide ia, que, na sociedade ocidental, qualquer tipo de autoridade está submetido a pressões e crises. A atitude psicanalítica reforça o distanciamento à crítica do conceito de legitimidade, muito desenvolvida nas ciências sociais.

 

Para ele, a esfera política opera como extensão da esfera particular, a veneração exagerada do homem público é vista como recorrência da admiração do filho pelo pai. Quanto mais carente de atenção e afeto, nas relações pessoais, tanto mais tende a personalidade a “externalizar-se” à esfera pública; nessa procura de aceitação, amor e cumplicidade. Não é possível o fanatismo na política, quando o partidário reconhece no seu líder o deslocamento da imagem paterna, da mesma forma como o crente fraqueja quando analisa sua conduta religiosa com destino à ilusão. Freud realiza uma crítica da política na média a que vincula neurose e poder, sintetizados em Ricardo III. Freud colocou em xeque o exercício ‘livre’ da cidadania, na medida em que descobriu o quanto de ‘irracional’ esconde a conduta do cidadão médio.

 

O conselho de Laswell

 

Isso levou um político psicanalítico, Laswell, a aconselhar o liberalismo medicinal, vinculando o exercício da liderança democrática à saúde e não à doença.

 

Visualizar o fenômeno político, como expressão da esfera individual, em sua dimensão subjetiva, e tendo como fundamento a ansiedade, pode levar a negar a situação política objetiva. Da mesma forma, o protesto social, na visão psicanalítico política, pode ser visto como sintoma neurótico, abrindo espaço à Psiquiatria considerar a sociedade conforme as malhas do modelo médico mais autoritário: o modelo hospitalar clássico.

 

Ao rechaçar o maniqueísmo ingênuo, que consiste em rotular como “boa” ou “má” tal ou qual política, a Psicanálise vincula como “soluções dramatizadas”, de uma temática que tem a sua gênese na vida pessoal.

 

O governante tem o verdadeiro poder, mediante a atribuição ilusória de seus partidários.

 

A imagem freudiana do pai, como modelo de autoridade, vincula-se diretamente com a ide ia de que na sociedade ocidental qualquer tipo de autoridade será submetido a crises.

 

A atitude psicanalítica reforça o distanciamento ante a autoridade. Freud agrega a contribuição da análise psicanalítica à crítica do conceito de legitimidade, já muito desenvolvida nas ciências sociais. Para Freud, a dimensão política é uma extensão da esfera privada; assim, a veneração exagerada ante o homem público é uma recorrência da adoração do filho pelo pai. Freud considera a personalidade pública como um carente de atenção e afeto, derivado das relações pessoais.

 

Dessa forma, não é possível o fanatismo político quando o partidário reconhece, no seu líder, o deslocamento da imagem paterna; o crente , a fraqueza, quando analisa sua conduta religiosa, endereçada à ilusão. No fundo, Freud realiza uma crítica da política, na medida em que, fundado em Ricardo III, vê no homem que exerce o poder um neurótico. Por outro lado, funciona o mecanismo de identificação, daí as dinastias de poder dos Roosevelt aos Kennedy. A psicanálise colocou em xeque o exercício “livre” da cidadania na medida em que descobriu o muito de “irracional” na conduta do cidadão médio, daí, um político; logo, como Laswell aconselhar um liberalismo medicinal.

 

A grande receptividade da Psicanálise nos EUA constitui no fato dela postular a vinculação das ideias de mudança social à conduta neurótica, assim, revolucionário, seria aquele que estivesse em rebelião contra o seu pai. O público e o aspecto social mascaram “conteúdos latentes”, as ideologias revolucionárias seriam “racionalizações” de complexo edípicos.

 

Como confidente das fantasias e desejos do homem, Freud aprova o caráter repressivo da sociedade. Enquanto sugere uma atitude conciliadora da mesma ante os instintos, admite que seus interesses conflitam com o indivíduo. Assim, a debilidade, credulidade e passividade das massas é acompanhada pela aquisição de poder pelos líderes políticos. Segundo Freud, por natureza, os homens são in capazes de esforço contínuo, de um trabalho regular e planejado, porém só ele é fonte de independência e maturidade.

 

Isso é privilégio de algumas minorias, daí não esconder Freud a sua admiração pelas minorias que sabem o que querem. Na sua Novas Contribuições à Psicanálise, ele imagina a existência de um pequeno grupo de homens de ação, imbatíveis em suas convicções e impermeáveis à dúvida e ao sofrimento, como condição de regeneração social. No mesmo estilo, em carta a Einstein imagina ele uma espécie de República Platônica, cujos governantes se constituam como comunidade subordinando sua vida instintiva à ditadura da razão.

 

Para Freud o homem se compõe de uma estrutura instintiva básica, daí tentativas de supressão da opressão política; para ele, resultar iam na troca de um autoritarismo por outro. Embora admita que a massa possua qualidades éticas acima da norma, isso não basta para redimi-la do fato, de que, o calor do companheirismo entre seus pares anule a racionalidade do comportamento. Na medida em que a sociedade mantém sua coesão graças ao sentimento de dependência e respeito pelo líder, possuí um fundamento autoritário. A sociedade para Freud é sempre uma sociedade de desiguais, a igualdade é vista como utópica. Freud, parte do pressuposto liberal, que, sem a desigualdade erótica, a escassez e competição erótica, parcialmente sublimada em benefício da sociedade, não faltariam antagonismos e identificações que a mantivessem unidas. Se trocarmos a recompensa econômica pela emocional, veríamos Freud com o aquele que traduz a linguagem da economia clássica em código ético moral. O ethos liberal subjacente a Freud transparece na sua admissão da desigualdade como um “destino”, sua resignação ante a fatalidade da existência da autoridade, buscando sua adequação ao social nunca sua abolição. Por sua vez, ao comparar a autoridade pública à paterna, a massa às crianças, destrói qualquer idealização da autoridade pública. A analogia entre a estrutura familiar ao Estado e sua técnica analítica encaminhada à emancipação dos vínculos familiares, constitui-se numa crítica ao “respeito” social e político.

 

Como o comportamento político tem raízes inconscientes, a política dever ser a catarse das massas, com função idêntica à arte no plano individual. Assim, nas guerras as nações postulam interesses como “racionalizações” de suas paixões; a ação coletiva representa regressão à barbárie; assim, o Estado se permite atos que o indivíduo jamais o faria. A maior parte das decisões “heroicas” se dá sob o signo do instinto da morte. Freud critica o Estado na medida em que o identifica com as massas, vendo-o como um ídolo que esmaga cegamente a consciência individual. Quando condena o caráter repressivo da sociedade política, o faz na medida que a categoria indivíduo constitui o fundamento de seu discurso e assegura a unidade de seus pontos de vista.

 

Para o fundador da Psicanálise, a política era algo que ocorria na psique dos indivíduos, daí sua psicologia ser tanto individual como social, visto essa como “externalização” de fantasias e desejos pessoais. O interesse pelo social, tem como base o individual. A psicanálise freudiana se insere na tradição liberal da defesa do indivíduo.

 

No intuito de domar o indivíduo associal, Freud reconhece a importância civilizadora da sociedade, porém, encara suas exigências sob o ângulo da “renúncia”. Nega o conceito organicista, segundo o qual os indivíduos se realizam através da Igreja, comunidade sagrada ou Estado. A visão freudiana comparte a noção segundo a qual a sociedade significa sempre sacrifício da individualidade, neste sentido, amplia as posturas de Nietzsche e Max Stirner a respeito do “único”. Daí sua tentativa terapêutica em separar as paixões particulares de sua transferência neurótica sobre a autoridade. Seu tema gira em torno do custo sacrifício da liberdade individual à tirania social. Encara o auto sacrifício como doença. Sua tarefa consiste em controlar o custo entre o princípio de prazer (satisfação) e o princípio de realidade (renúncia), nisso define-se a Psicanálise como terapia e doutrina.

 

Procura defender o indivíduo da submissão inevitável a preceitos comunitários, mediante a análise do fundamento destes e sua gênese. Nesse sentido, sua doutrina é a realização do liberalismo, onde a medicina atua como mediadora entre o conflito individual e a coerção social, analisando esta no momento em que coíbe aquele outro. O interesse pelo indivíduo, herdado do romantismo, traz consigo uma visão elitista. Seus sujeitos são os “cultos” que alcançaram  sua  individualidade reconciliando-se com seus instintos, é a maturidade como meta de chegada da existência. Perfila o tipo do homem racional, prudente, liberto interiormente da autoridade, quites com sua quota de conflito e neurose. A psicanálise postula uma espécie de alienação racional entre os entusiasmos públicos. Freud é cético em relação a todas as ideologias, menos a que tange à vida pessoal.

 

A psicanálise parece como doutrina do homem “particular” que se defende contra a invasão da esfera “pública”, a preocupação pela esfera “pública” se dá por motivações conscientemente “particulares”. A medida psicológica, para ele, não é perfeição social, é a saúde individual. Há luta individual pelo autodomínio ; a psicanálise é a vitória do ego (consciente) sobre o Id (inconsciente) condição do domínio sobre o ambiente. Dessa maneira, é que a ética darwiniana transporá à psicologia, vai mais além do liberalismo sobrevivendo ao seu declínio.

 

A liberdade

 

Para Freud, a liberdade é uma metáfora, só tem existência real do indivíduo, quando entendida como um equilíbrio entre o ego e o superego e o id. A procura de liberdade social, para ele, é uma contradição lógica, entende a liberdade e a tirania como estados psíquicos, na base dela há a “tirania psíquica”, entendida como domínio dos temores e compulsões inconscientes. A psicanálise postula o indivíduo antipolítica que procura a auto perfeição num contexto o mais possível separa da comunidade. Para ele, toda política é sinônimo de corrupção, seja num Estado liberal ou autoritário.

 

Na medida em que, para ele, a liberdade é um estado psíquico, sua possibilidade de existência se dá em qualquer sociedade. Assim, pode haver escravos livres em Roma Antiga, como cidadãos escravizados na Europa. A Psicanálise com sua ênfase na vida interior e no equilíbrio das três instâncias do psíquico como condição de saúde, questiona os regimes políticos. Dessa maneira, Freud desloca a questão da análise do sistema político, para ele, ela passa pela equação pessoal e pela interrogação de até que ponto o indivíduo deve ser limitado no marco  das  relações  sociais predominantes. Ele é o máximo de consciência possível do ‘ethos liberal’, que tem como base o inconsciente.

 

Obras consultadas:

S. Freud. Obras Completas. Trad. Luiz Lopes Ballesteros y De Torres. Ed. Americana, Buenos Ayres, 1943. Volumes: VIII – Totem y Tabu; IX – Psicologia de las massas y analisis del yo; XI – El porvenir de las religiones.

Harold Laswell – Power and Personality, 1948.



* Maurício Tragtenberg foi cientista político e professor do Departamento de Ciências Sociais da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. Publicado originalmente em: Folha da Tarde, 22/09/1979.


segunda-feira, 10 de agosto de 2020

BAR-ZOHAR: BEN GURION, O PROFETA ARMADO

 BAR-ZOHAR, M. Michel. Ben Gurion: o profeta armado. São Paulo: Editora Senzala, 1968 (386 p.) 

APRESENTAÇÃO.

MAURÍCIO TRAGTENBERG


Dizia Napoleão ser a política, a forma moderna  de  tragédia.  Por  outro  lado,  a  pureza dos princípios não só tolera como  requer  as  violências  e  Israel  não  é  a  exceção.    O    livro    tem    como    única  finalidade  recompor  a  imagem  de  Ben  Gurion após o “caso Lavon”.  


Ben   Gurion,   o   criador   do   Exército  Nacional,  o  pai  do  Estado  de  Israel,  o  vitorioso    estrategista    da    guerra    de  Independência,  é,  como  o  fôra  Trotski  também, atualmente um profeta  desarmado,  um  carisma  no  ostracismo,  sofrendo   uma   “desgraça”   inerente   à  condição  da  ação  política.  Aceitando  a  chance da glória, o político aceita o risco  da  infâmia,  um  e  outro  “imerecidos”.  A  ação política é “em si” impura na medida  em que é uma ação sobre o outro, dirigida  a grupos. Neste sentido nenhum político  é inocente. Governar é prever; e existe o  imprevisto: eis a tragédia.  


Neste   sentido,   descortina-se   o   “caso  Lavon”.  Este  fundador  do  movimento  pioneiro  GORDONIA,  veio  a  Israel  na  segunda  Aliá  (imigração)  da  década  de  vinte. Membro  do  movimento  Kubatziano  “coletivista  agrário”  exercei  altos cargos no Hapoel Hatzair (o jovem  trabalhador) que serviu de base ao Mapai   foi  cientista  político  e  professor da  Fundação Getúlio Vargas (SP) e autor do livro “Refl exões sobre o socialismo”.   (partido  trabalhista  de   Israel)  ocupando  o    cargo    de    Ministro    da    defesa    e  Secretaria  Geral  da  Histadrut  (central  trabalhadora). Atualmente com 70 anos é  um   símbolo   de   seriedade,   honradez,  respeito   pela   juventude   universitária.  Parecem-nos   inadequados   à   sua   real  personalidade, os conceitos emitidos por  Bar-Zohar nesta obra.  


Lavon  é  um  político,  portanto  não  é  “inocente”.    A    maldição    da    política  consiste em traduzir os valores em fatos.  Neste  campo  toda  vontade  vale  como  previsão  e  todo  prognóstico  é  cumplicidade. Neste sentido, Lavon fora  absolvido   pela   Comissão   Especial   de  Inquérito  formada  a  mando  de  Eskhol  a  respeito  da  “Operação  Egito”,  operação  de espionagem que terminara num fiasco  com   a   detenção   dos   implicados   por  Nasser.  


Lavon  vivera  dramaticamente  o  conflito  entre  a  moral  da  responsabilidade  que  julga  conforme  os  efeitos  dos  atos  e  a  moral   da   consciência,   que   coloca   a  necessidade da obediência incondicional  dos  valores  quaisquer  que  sejam  suas consequências. Sem dúvida, ele ordenara  o incremento das ações de represálias aos Fedayn     (bandos árabes     armados), ocasionando  inúmeras  mortes.  A  morte na  ação  política  ou  militar  não  é  um mundo que termina, é um comportamento  que  se  extingue;  daí  ser  impossível  governar  com  o  “Sermão  da  Montanha”    ou    com    o    “imperativo  categórico” de Kant. No entanto, perdem  qualquer   fôro   de   verossimilhança   as  palavras  que  Bar-Zohar  coloca  na  boca  do  humanista  Lavon,  ao  referir-se  às  ações  antiárabes.  “Pode  destruir  tudo,  coisa  e  pessoas;  os  árabes  não  usam  móveis luxuosos”.  


Sentimos que aqui fala mais o adepto do  carisma de Ben Gurion do que o repórter  imparcial dos fatos. O autor apresenta um  histórico da formação do Estado através  de uma Personalidade, no sentido de um  Plutarco  moderno,  muito  próximo  dos  “Panegíricos  Latinos’.   Ben  Gurion,  o  organizador    sindical,    o    homem    de  Biltmore,  o  organizador  do  Exército,  do  Estado  judeu  é,  sem  dúvida,  uma  figura  épica.  É  um  carisma  na  época  atômica:  essa evolução é que o livro descreve.  


Apenas    devemos    notar    que    certos  aspectos que o autor atribui a Ben Gurion  são o “resultado” de uma atitude conjunta  do   governo   e   do   Mapai,   como   o  estabelecimento    de    relações    com    a  Alemanha  Federal,  o  estreitamento  de  relações com a França, que forma objetos  de uma decisão global do governo.  


Assim, perpassa pelo livro da história de  um   povo   vinculado   ao   surgimento   e  declínio de um personagem, Ben Gurion,  carisma  cheio  de  boas  intenções,  mas,  por sua ação, profundamente munido de  messianismo profético que o afastava de  qualquer diálogo com os homens de sua  geração. A sua maior penetração no meio  dos  jovens  deve-se,  possivelmente,  ao  “Velho” encarnar o Pai que ansiosamente  a  juventude  procura  numa  fase  de  seu  desenvolvimento.  

Sem dúvida que a absolvição de Lavon e  ostracismo  de  Ben  Gurion  supõem  a  contingência na História, sem a qual não  há  culpados,  em  política,  e  a  nacionalidade na História, sem a qual há  loucos. Não há o “outro” como existência  pura. Uma consciência pura num estado  de  inocência  original  inexiste.  São  os  pactos  com  o  demônio:  o  de  reparações  coma   a   Alemanha,   a   aliança   com   a  França  e  a  Inglaterra,  por  ocasião  de  Suez,   como   reação   ao   fornecimento  maciço    de    armas    ao    Egito    pela  Checoslováquia.  Tudo  isto  mostra  que  em política inexistem belas almas, perde- se  o  álibi  das  boas  intenções.  Não  há  escolha   entre   pureza   e   violência.   A  pureza  das  ideias  sionistas  socialistas  coexiste com a campanha do Sinai, com  as armas francesas. Há apenas a escolha  entre as diversas formas de violência. Em  suma,   quem   tem   a   razão   histórica  (armada)  pode  dispensar  a  razão  teórica  (ideológica).  


Num mundo onde só há poder de alguns,  resignação  de  outros,  o  profeta  amado,  descrito  por  Bar-Zohar,  constitui  realmente  a  versão  hebraica  de  Maquiavel  e  o  “Príncipe”  é  substituído  pelo “Velho Testamento”.  


O  Profeta  Armado  se  constitui  numa  súmula da formação do Estado de Israel,  e sua luta pela coexistência comum com  o   árabe,   suas   tentativas   fracassadas.  Surgindo  Israel  com  a  complacência  do  Ocidente,  porém,  sem  contar  com  seu  apoio     total,     o     “pacto     periférico”  idealizado por Ben Gurion com a Etiópia  e  a  Pérsia  constitui-se  numa  resposta  diplomática,    no    plano    árabe,    seu  “engajamento”    com    a    França,    sua  resposta  à  política  calculista  do  “State  Department”  e à rejeição soviética.