domingo, 2 de outubro de 2016

A Escola Como Organização Complexa

A Escola Como Organização Complexa

Maurício Tragtenberg

A ocidentalização da cultura caminha a par com o desenvolvimento urbano, comercial e a necessidade de “letrados” para darem andamento burocrático às estruturas de poder formadas em torno da Igreja e do Estado Moderno.
De um lado, o intelectual é domesticado no contexto das universidades ligadas à Santa Sé, de outro, com a emergência do jesuitismo, seu aprendizado passará pelo processo de organização e planejamento de estudos num espírito de obediência – é o sentido da ratio studiorumde 1586.
No século XIX a expansão da técnica e a ampliação da divisão do trabalho, com o desenvolvimento do capitalismo, levam à necessidade da universalização do saber ler, escrever e contar. A educação já não constitui ocupação ociosa e sim fábrica de homens utilizáveis e adaptáveis.[1]
Hoje em dia a preocupação maior da educação consiste em formar indivíduos cada vez mais adaptados ao seu local de trabalho, capacitados porém, a modificar seu comportamento em função das mutações sociais. Não interessa, pelo menos nos países industrialmente desenvolvidos, operários embrutecidos, mas seres conscientes de sua responsabilidade na empresa e perante a sociedade global.[2] Para tal constitui um sistema de ensino que se apresenta com finalidades definidas e expressas.
Se esse, porém, é o objetivo do sistema de ensino, insere-se no mesmo corpo professoral encarregado de transmitir o saber e mais preocupado ainda em inserir-se na sociedade, ter reconhecimento oficial, êxito no magistério enquanto “carreira”, utilizando para isso os diplomas reconhecidos possíveis, numa sociedade onde, segundo Max Weber, o diploma substitui o direito de nascença.
A realização de tais objetivos pressupõe a existência de uma “burocracia pedagógica” com objetivos definidos ante a sociedade global, porém, nem sempre os predominantes.
O sistema burocrático estrutura-se nas formas da empresa capitalista como também na área da administração pública e seu papel essencial é organização, planejamento e estímulo. O sistema burocrático estrutura-se em nível de cargos, que por sua vez articulam-se me forma de “carreira”, onde o diploma reconhecido, tempo de serviço e conformidade às regras constituem pré- condições de ascensão. Seu modo de recrutamento e sistema de promoção são definidos por ela como o mecanismo de comunicação intraburocrático, diluído nas diversas áreas de competência.
Um dos aspectos estruturais do sistema de educação burocrático é que os usuários não controlam de modo algum a gestão dos fundos que dedicam à coletividade. A estrutura burocrática do ensino em nível nacional desenvolve-se em três níveis:
q       Organização do pessoal
q       Programas e trabalho
q       Inspeções e exames
No que se refere a pessoal, o burocrata da educação está separado dos meios de administração como o operário dos meios de produção, o oficial dos meios de guerra e o cientista dos meios de pesquisa.
O pessoal docente no sistema burocrático pode ser recrutado por concurso, de títulos e provas, contratado a título precário cujo nível de vencimento dependerá do número de aulas atribuídas por escolha fundada em pontos obtidos, a critério das Secretarias de Educação. Pode-se dar o caso do docente contratado a título precário e estabilizado no cargo por decreto em obediência a exigência constitucional. A ascensão do docente na carreira não depende da verificação dos resultados obtidos a longo prazo sobre seus alunos; portanto, os critérios da eficácia ou valor são desprezados e o de conformidade (aprovação nos exames, provas) supervalorizados.[3]
O exame, mais que o programa, define a pedagogia do docente. O objetivo que a pedagogia burocrática lhe propõe não é o enriquecimento intelectual do aluno, mas seu êxito no sistema de exames.
O melhor meio para passar nos exames consiste então em desenvolver o conformismo, submeter-se: isto é chamado de “ordem”. Portanto, colocam-se três objetivos ao docente: conformidade ao programa, obtenção da obediência e o êxito nos exames.* A escola conduz a um condicionamento mais longo num quadro uniforme e máxima divisão do saber que não visa à formação de algo, mas sim, a uma acumulação mecânica de noções ou informações mal digeridas. Se na Europa ou América Latina, o professor tende cada vez mais a responder a controles burocráticos, nos EUA as associações de pais, industrias e grupos exercem pressões para que se ensinem determinadas coisas com um tipo de orientação definida. Essa interiorização da burocracia, Alexis de Tocqueville no século XVIII e Riesman no século XX consideram uma das características da cultura norte-americana.
A comunidade de pais encontra no controle burocrático a melhor garantia contra quaisquer tendências desviantes do professor ao saber que é severamente controlado, julgado e regulamentado.
É nos níveis mais inferiores de ensino que a comunidade de pais tem maior peso. Quanto mais pobre é a origem social dos alunos, o controle do vértice sobre a escola mais será ligado ao controle pela base na forma de Conselho ou Comunidade de Pais. Quanto mais alta for a origem social dos alunos e professores, também em nível universitário, o controle burocrático mais satisfará às necessidades de controle.
Há uma ambivalência em relação à figura do professor: de um lado é desprezado como “servidor da comunidade”, de outro, encarado como portador do saber absoluto. É criticado por não fazer sentir todo o peso de sua autoridade sobre o aluno. O público gosta da burocracia, quer ver seus alunos enquadrados, condicionados, como única condição de atingir a fase adulta.
Uma escola fundada na memorização do conhecimento, num sistema de exames que mede a eficácia da preparação ao mesmo, nada provando quanto à formação durável do indivíduo, desenvolve uma pedagogia paranóica, estranha ao concreto, ao seu fim. Quando falha, interpreta este evento como responsabilidade do educando.
Uma minoria de jovens pertencentes a camadas superiores da classe trabalhadora ou pequenos funcionários não freqüenta o secundário e se realiza em profissões que exigem formação profissional específica. Assemelha-se à alta burguesia, que não se preocupa com a promoção social de seus filhos, oferecendo-lhes mais lazeres e liberdade, condições de apreensão de um autêntico conhecimento. Enquanto isso, a pequena burguesia quer subir e os trabalhadores estão determinados a suportar uma escola que não toma em conta suas aspirações. Esse contingente às vezes perfaz 80% da população.
No âmbito microescolar encontramos na escola uma burocracia de staff (diretor, professores, secretário) e de linha (serventes, escriturários, bedéis). O relacionamento staff e linha varia muito com o grau de escola, se médio ou superior.
Efetuou-se atualmente no Brasil uma conjunção do nível primário e médio, tendendo à escola unificada, que não deixou de criar problemas de “áreas de competência” entre o staff: quem dirige a escola unificada, o diretor do antigo primário ou do secundário?
Em suma, na escola como organização complexa articulam-se várias instâncias burocráticas acima enunciadas, incluindo a inevitável Associação de Pais e Mestres e o aluno, objeto supremo da instituição, conforme o tom dos discursos solenes em épocas não menos solenes.
O corpo de professores procura manter sua legítima esfera de autoridade sem intromissões estranhas. É unânime na recusa à interferência dos pais no seu trabalho, pois isso pode prejudicar sua posição de autoridade e sujeitá-lo a controle por elementos estranhos.[4]
Nas suas relações com o diretor a expectativa de comportamento dos professores é que recebam apoio do mesmo, seja em relação a alunos ou pais de alunos. Funciona o princípio de que nenhum professor deve criticar colega antes terceiros, especialmente alunos.
O diretor por sua vez funciona como mediador entre o poder burocrático do quadro administrativo e a escola, como conjunto, sofre pressão dos professores no sentido de alinhar-se com eles, dos alunos para satisfazer reclamos racionais ou não, e dos pais, para manter a escola ao nível desejado pela comunidade. Tem de possuir as qualidades de um político, algum senso administrativo e ser especialista em relações humanas e relatórios oficiais.
O pessoal de linha obedece-o diretamente, pode ser utilizado como meio do corpo professoral pelo controle das conversas de corredor e da sala dos professores.s e o diretor for do tipo ausente, pode ter em suas mãos o controle da docilidade dos alunos por meios informais, assegurando o bom andamento da instituição.
O pessoal administrativo de linha enfatiza algumas singularidades do comportamento burocrático, evita a discussão pública de suas técnicas, os despachos de processo são sonegados ao interessado enquanto não se der o chamado despacho final no citado processo. burocracia administrativa entende-se como uma certa adesão a regras – atividades-meio – tendo em vista fins determinados. No entanto, a disciplina, definida como adaptação a regulamentos, não é encarada como adaptação a finalidades precisas, mas constitui-se num valor básico na estrutura burocrática. Este deslocamento das finalidades originais se dá no processo burocrático determinar alto nível de rigidez e incapacidade de ajustamento a situações novas. Daí a ênfase no formalismo e o exagero no ritualismo burocrático nos estabelecimentos de ensino, no nível administrativo.
A estrutura de “carreira” leva o funcionário a adaptar seus pensamentos, sentimentos e ações nesta perspectiva, o que induz à timidez, conservadorismo rotineiro e tecnicismo. A burocratização desenvolve a despersonalização de relações entre burocracia e público, funcionários de secretaria escolar e o estudante. Ela desenvolve a tendência do burocrata concentrar-se nessa norma de impessoalidade e a formar categorias abstratas – isso tende a conflitar suas relações com o público. Pois, os casos peculiares individuais são ignorados, o interessado convicto das peculiaridades de seu problema opõe-se a um tratamento impessoal e categórico.
O comportamento estereotipado do burocrata não se adapta às exigências dos problemas individuais. O tratamento impessoal que ele confere a assuntos de grande significado pessoal para a parte interessada (aluno, professor) o leva a ser visto como arrogante e insolente.
Tudo isso é coberto por uma grande capa de dramaturgia. Que significa isso? A dramaturgia, o culto da aparência, dos gestos, tem um valor legitimador na estrutura burocrática. Da mesma maneira que a bata branca do médico ou do professor mostra que ali há alguém de limpeza irrepreensível, a régua de calculo do engenheiro mostra alguém altamente especializado e preciso. O talento dramático tem cada vez mais importância na função hierárquica, qual seja, do diretor severo, porém, benevolente, o inspetor rígido e ao mesmo tempo assíduo tomador de cafezinhos na diretoria, alem de assinante regular do célebre Livro de Termo de Visitas da Escola, como comprovante que passou por lá.
Há um conceito, segundo o qual os ocupantes de posições hierárquicas são os mais capacitados, mais trabalhadores, os mais indispensáveis, os mais leais, fidedignos e os mais autocontrolados, em suam os mais justos, honestos e imparciais. Também visualiza-se que uma pessoa muito ocupada é de importância incalculável para a burocracia e encara suas tarefas de maneira mas séria que outras pessoas. É aconselhável para aqueles que querem vencer na estrutura burocrática carregarem as pastas debaixo do braço, mesmo quando saiam à noite ou pensem folgar nos fins de semana.
Acresce nas burocracias educacionais, escolares ou ministrais, que o sistema de status tem seu próprio dispositivo dramatúrgico que inclui insígnias, títulos e deferências e símbolos da grandeza material como salas forradas de tapetes ou mobiliário luxuoso, ainda ditos filosóficos profundos como vê quem adentra na sala de um administrador universitário, por sinal também professor: “Quem sabe faz, quem não sabe ensina”.
Em suma, a conduta burocrática implica uma exagerada dependência dos regulamentos e padrões quantitativos, impessoalidade exagerada nas relações intra e extragrupo, resistências à mudança e configura os padrões de comportamento na escola encarada como organização complexa. Em suma, o administrativo tem precedência sobre o pedagógico.

Escola como centro de reprodução das relações de produção

Não há escola única. Há graus de ensino onde alguns têm acesso em nível decrescente quanto mais alto for o escalão acadêmico. A partir do primário opera-se a divisão de duas redes de escolarização de classes, na medida em que o ensino primário:
a)     garante uma distribuição material, repartição dos indivíduos nos dois pólos da sociedade
b)     garante uma função política e ideológica de inculcação.
A separação dos alunos em duas redes no ensino primário é o meio e principio do funcionamento. Esta separação se efetua no interior da escola primária, uma em direção acadêmica, outra em direção profissional. Uma rede é primária profissional e outra secundária superior. O prolongamento da escolaridade obrigatória reforça o processo. A generalização da escolaridade obrigatória única é a generalização da divisão. A inculcação ideológica dá-se através das várias formas de saber, verdade, cultura, gosto.[5]
Na rede escolar o culto da arte, ciência pura, profundidade filosófica, sutilezas psicológicas, são formas de inculcação vinculadas a orientar a ação do educando conforme as normas de direito, políticas hegemônicas, sendo representadas enquanto deveres.
A inculcação não se dá pelo discurso mas através de práticas de exercícios escolares onde a nota equivale ao salário, recompensa pelo trabalho realizado. Da mesma maneira que o mercado do trabalho é regulado pela competição, no interior da escola ela é cultuada nos sistemas de promoção seletivos. O aluno é obrigado a estar na escola e é livre para decidir se quer ou não, ter êxito ou não, como o indivíduo é livre ante o mercado de trabalho.
As práticas do ritualismo escolar, deveres, disciplinas, punições e recompensas, constituem o universo pedagógico. A escola realiza com êxito o processo de recalcamento de pontos de vista opostos aos hegemônicos e esse sujeição condiciona a inculcação. O trabalho é vagamente valorizado, enquanto artesanato, o processo histórico é reduzido a um conjunto de guerras, datas e nomes cuja finalidade principal é reduzir à insignificância o significativo: dimensões sociais do histórico ou sua temporalidade. Veja-se a dificuldade em convencer os historiadores de que o presente também é história.
O aparelho escolar contribui para a reprodução da qualidade da força de trabalho, na medida em que transmite saber e regras de conduta (ler, escrever e contar), que têm um destino produtivo.
Os alunos da rede escolar recebem também conteúdo científico. Eis que o processo de escolarização contribui para a reprodução das condições materiais de produção na medida em que a produção social é uma transformação material da natureza, supondo o conhecimento objetivo sob as mais variadas formas.
Todas as práticas escolares estão a serviço da inculcação, que pressupõe técnicas e métodos apropriados. A técnica escolar formaliza os conteúdos de inculcação e os de saber positivo – as disciplinas escolares – homogeneizando-as na medida em que são ensinadas como regras escolares.
O conhecimento escolar é usado no quadro de problemas surgidos da prática escolar com objetivos definidos: dar notas, classificar e punir ou premiar os indivíduos. Isso porque há uma separação entre as práticas escolares e as práticas produtivas em geral. A separação escolar é a chave na determinação do papel no conjunto das relações da sociedade atual. Toda escolarização é, por sua natureza, conservadora, pois é quem legitima a separação entre consciência e a prática.
A escola é regida pelo princípio da contradição e não são categorias como psicologia do escolar, normal/anormal e, sim, categorias como inculcação, submissão, recalcamento, que podem explicar alguns fenômenos que ocorrem nas estruturas escolares. Como Aparelho Ideológico, a escola primária reflete uma unidade contraditória de duas redes de escolarização. A escola favorece os favorecidos e desfavorece os desfavorecidos e o princípio disso está na diferença social da família.
Trata-se de perguntar a cada indivíduo como ele passou sua infância pré-escolar, como determinante de sua escolaridade individual ulterior. As classes sociais não podem ser pensadas como a partir dos indivíduos. Elas não se reduzem a propriedades sociais características de cada indivíduo. Essa visão atribui importância à família, lugar material da primeira educação. A explicação é regressiva, cronológica, individual.
Essa cronologia – família, escola primária, ginásio ou não – só existe do ponto de vista do indivíduo. Na realidade, família, escola primária, ginásio etc.
1)     preexistem ao próprio indivíduo
2)     coexistem simultaneamente
3)     mantém relações necessárias uns com os outros.

O professor está a serviço do aparelho escolar, não de sua classe. À falta de base, um nível de ensino remete ao imediatamente inferior e este à família, esquecendo que há duas redes devido à relação social de produção. Se há famílias providas e desprovidas é porque há duas classes. O funcionamento do conjunto do aparelho escolar e o lugar da escola primária no interior do aparelho escolar são definidos na sua função de reprodução das relações de produção.
Para Marx, as relações de produção são a combinação social das forças produtivas, a maneira pela qual os instrumentos de produção e o próprio trabalho produtivo se repartem socialmente entre os vários agentes sociais da produção. O essencial é a relação de propriedade. Daí, as relações sociais da produção capitalista se definirem pela separação entre o trabalho produtivo e os meios de produção, exploração do trabalho pelo capital.
O operário reproduz-se enquanto tal na medida em que não tem elementos de acumular e sim, somente, reproduzir sua força de trabalho. Essa reprodução pode originar-se a partir da industrialização da agricultura e empobrecimento das classes médias.
O aparelho escolar tem seu papel na reprodução das relações sociais de produção quando:
a)     contribui para formar a força de trabalho
b)     contribui para inculcar a ideologia hegemônica, tudo isso pelo mecanismo das práticas escolares
c)     contribui para reprodução material da divisão de classes
d)     contribui para manter as condições ideológicas das relações de dominação.
O aparelho escolar impõe a inculcação ideológica primária e é seguido pelos diversos aparelhos – televisão, publicidade, seitas etc. A escola inclui, na forma de rudimentos, técnicas indispensáveis à adaptação ao maquinismo, em gera na forma preparatória.
Na família camponesa, fundada na exploração agrícola em comum, a escola é considerada tempo perdido, não há escola de agricultura. O que aparece com esse título é escola para a exploração agrícola capitalista. A escola pode ser aparelho ideológico segundo estágios do modo de produção capitalista na sua combinação concreta interior a cada formação social capitalista. A escola não cria a divisão em classes, mas contribui para esta divisão e reprodução ampliada. A reprodução ampliada das classes sociais comporta dois aspectos:
a)     A reprodução ampliada dos lugares que ocupam os agentes. Estes lugares designam a determinação estrutural de classes, i. e., o modo de existência da determinação pela estrutura de produção, dominação, subordinação política e ideológica nas práticas de classe: é um efeito da estrutura sobre a divisão social do trabalho.
b)     A reprodução/distribuição dos próprios agentes entre estes lugares. Os aparelhos ideológicos intervêm ativamente na reprodução dos lugares das classes sociais. Há uma reprodução inicial das classes sociais e pela oposição de classes, onde se move a reprodução ampliada da estrutura, inclusive das relações de produção que preside o funcionamento dos Aparelhos ideológicos.
Os Aparelhos Ideológicos não criam a ideologia, mas inculcam a ideologia dominante. Não é a Igreja que cria a perpetuação da religião, é esta que cria e perpetua a Igreja, diferente do que pensava Max Weber.
A análise do fetichismo da mercadoria ultrapassa os Aparelhos Ideológicos. Uma empresa é um aparelho, no sentido de que pela divisão social do trabalho em seu interior, por exemplo, pela organização despótica do trabalho, são elementos que definem as relações políticas e ideológicas concernentes aos lugares das classes sociais no conjunto da estrutura. Há mecanismos para reprodução de lugares e agentes, daí a inanidade em falar de ascensão social ou mobilidade social.[6]
Dá-se a reprodução dos agentes. A qualificação é uma qualificação-sujeição, não é somente qualificação técnica do trabalho. A empresa é um Aparelho distribuindo seus agentes no seu interior. As classes capitalistas não são castas escolares. A relação escola-aparelho econômico continua a exercer sua ação durante sua atividade econômica: isso se chama pudicamente formação permanente.
Não é a escola que faz com que sejam principalmente camponeses a coparem os lugares suplementares de operários. É o êxodo dos campos, acompanhando a reprodução ampliada da classe operária, que desempenha o papel da escola.
c)     Trata-se de uma distribuição inicial dos agentes ligada à reprodução inicial dos lugares das classes sociais: é ela que designa para este ou aquele aparelho, para esta ou aquela série entre eles, e segundo as etapas e as fases da formação social, o papel respectivo que eles assumem na distribuição dos agentes.[7]
As organizações complexas controlam e domesticam as forcas sociais. Elas codificam, centralizam. Essa apropriação pela organização da existência, sob todas as formas, é realizada também pela destruição e desintegração, destruindo as forças que se opõem à sua expansão.
Atrás do discurso da racionalidade, nessa luta, a organização abriga-se para legitimar sua empreitada e desqualificar uma realidade que ela mutila.
Taylor, no que tange à organização industrial, Lenin, no que se refere à organização política e Clausewitz, pata a organização militar, são os fundadores de uma teoria que dominam a partir do status de chefes. A organização científica necessita de pais “místicos” para assegurar sua fundamentação.
As organizações são, acima de tudo, produtos historicamente dados e não sistemas fechados a-históricos, como pensa Crozier. Pretendendo romper com o passado, criticando acerbamente as instituições tradicionais, a teoria organizacional procura uma ruptura “epistemológica”. Essa ruptura tem como função proibir quaisquer comparações entre instituições tradicionais e instituições modernas. Nessa imagem de organização encontram-se estocados mitos, fábulas e lendas, um universo fantasmagórico mais ou menos discretamente camuflado que subsiste na base do discurso organizacional.
As organizações políticas, como as industriais, reforçarão a área do imaginário. O tom será mais ou menos severo, pois, na iminência da tragédia, a traição ameaça o herói!
A escola tem um papel nessa mascarada organizacional, operando as variações mais amplas, a partir dos papéis de mestre, aluno, burocrata, administrador.
O que se esconde atrás da representação da racionalidade organizacional? Marx nos ensinara a ver que atrás do espetáculo da circulação de mercadorias escondia-se o trabalhador mutilado; o fetichismo mercantil esconde o sentido da organização. Ela é a base mais apropriada à imaginação moderna. Isso constitui uma das condições do desenvolvimento das organizações.
Centro da tensão é ao mesmo tempo da transferência: o tempo presente transcorre em função de satisfações futuras. A organização burocrática exerce a ditadura do signo, onde as palavras- chave que a designam são Contabilidade, Plano, Programa, Controle. A organização complexa apresenta-se como forma à qual tudo deve se submeter.[8]
Nos supermercados nenhum objeto é percebido na sua imediatez: tudo é empacotado, conservado, etiquetado. Do produto somente percebemos a representação fotográfica, legenda, desenho. Os corpos materiais dissolvem-se em corpos de signos, são elementos num único texto. Idêntico processo de coisificação se opera com o elemento humano. Dirigir homens é como mercadorias, manipular signos.
As organizações complexas traduzem o real numa linguagem simples, transcrevem os corpos em signos. As organizações complexas traduzem o corpo em signos. Realizada a operação, o que sobrou do corpo original? Ele desaparece na nova representação. A organização toma como interlocutor o corpo que ela produziu, ela define, para nós, o emprego do tempo e do nosso corpo. No fim do processo, o corpo nada mais é do que um signo num conjunto de signos que formam as malhas organizacionais. A organização apropria-se de nosso corpo, de tal forma que qualquer ruptura nos aprece como uma auto-ruptura. É aí que a adesão à organização encontra um de seus fundamentos; o corpo, que adere à organização visualizando a possibilidade de uma ruptura reage com alta carga de ansiedade. Controladores e controlados, engajados no mesmo processo, participam de uma comunidade de destino: a organização da racionalidade. A análise da violência e do sacrifício é inerente à estrutura organizacional.
A organização realiza um processo concomitante: destruição e unificação. O homem dividido na execução de suas tarefas parceladas, isolado no seio da grande metrópole, é reagrupado no interior das imagens organizacionais.
O taylorismo é a fisiologia do corpo dividido.
A organização significa um combate contra a entropia.
Mauss* conta a história do mito tsimhiam onde uma princesa dá à luz uma “Petite Loutre” miraculosamente; dirige-se com a criança à cidade de sei pai, o chefe. Apresenta-se a todos e pede para não mata-la caso a reencontre pescando na sua forma animal. Mas elaesqueceu de convidar um chefe. O chefe e a tribo esquecidos encontram no mar “Petite Loutre”, que tinha na boca uma grande foca e matam-na. O Grande Chefe procura-a e encontra-a no seio da tribo esquecida. Seu chefe desculpa-se, pois não conhecia “Petite Loutre”. Sua mãe, a princesa, morre de melancolia e o chefe culpado involuntariamente encaminha ao Grande Chefe todos os tipos de presentes como expiação.
Os reis se esquecem de convidar outros chefes para seu casamento, os criminosos sempre deixam uma pista. Luta-se em todos os níveis contra a entropia: o mito tsimhiam mostra que uma perturbação no sistema conduz à morte! É o que, em linguagem moderna, é a sabotagem, a pane, que as organizações modernas tentam conjurar. O equilíbrio camufla o desequilíbrio.
As organizações mantêm-se pela transmissão  e energia e sua conversão em trabalho: a reprodução a força de trabalho se dá em períodos de desequilíbrios sociais, pro exemplo, nas migrações rurais-urbanas, onde multidões sem trabalho concentram-se na periferia das grandes cidades; ou em migrações operárias de países estagnados para áreas de crescimento, como portugueses, espanhóis, argentinos e turcos na Europa. Como fonte de energia o trabalhador é vítima do processo de dilapidações e desgaste onde a organização que canaliza sua energia integra-o no movimento de deslocamento e desintegração. Daí verifica-se que a transformação da energia em trabalho só é possível através dos desequilíbrios provocados pelas organizações.
A eficiência do esquema centralizador é simbólica. Nesse sentido cabe à organização a produção do que a diferencia do mundo. A sociedade consumista insere-se no campo da simulação diferencial. A organização unifica a produção, representação da diferença. A dramaturgia converte-se na finalidade principal das organizações: congressos, paradas, desfiles, delegações recebidas com grandes pompas, banquetes, publicidade intensiva. A organização produz o Espetáculo. A distinção entre produção e representação desaparece. A organização deve produzir diferenças simbólicas ou extinguir-se. Assim, o nazismo, pela representação de massas, desmoraliza os oposicionistas reais ou potenciais. Tanto o Tenessee Valley Authority, como as grandes obras sobre o rio Dnieper, não só justificam uma organização centralizada côo também criam condições para o lirismo organizacional. A estrutura de pirâmide impõe a sua ordem, a eficiência nasce da hierarquia, seja a pirâmide familiar, política educacional. A organização é o grande elemento mediador entre “eu” e o “outro”. O medo ao isolamento se dá na medida em que a estrutura piramidal tem os meios para assegurar o monopólio das relações entre os homens. A organização centralizada e unitária constitui o grande refúgio, ela domestica a energia sem direção: não é por acaso que as organizações mais eficientes são aquelas onde predominam um sexo só: por exemplo a Igreja. Ela garante a vida de seus membros, nada é possível em ela. A autonomia inexiste, só há o dilema: inserir-se na organização ou desaparecer. Por isso ela acentua a retórica da integração. O Sindicato para Tannenbaum, a comunidade de Lloyd Warner e a corporação de Durkheim e Elton Mayo, aprecem como possíveis integracionistas num universo dividido.
Na realidade, a oposição segurança-inseguranca, integração-exclusão é artificial. Assim, a revolução industrial organiza o novo modo de produção, ao mesmo tempo que divide o homem num conjunto de tarefas parceladas.
Embora March e Simon argumentem que no bojo da teoria organizacional não há lugar para a coordenação, participam do delírio organizacional, racionalistas que não querem enxergar as organizações como instancias do imaginário também. A direção exclui, como os magos sacrificam. O centro funciona como um dado que deve ser “escotimizado”[9] – também na teoria dos sistemas isso se dá. No entanto, constitui-se me peça fundamental.
A organização burocrática complexa não explicita a necessidade do centro mas o não-necessário como pivô da organização. Tal estranheza faz parte também de certa concepção burocrática de socialismo, onde o Estado deve desaparecer progressivamente e, no entanto, ele domina em toda sua amplitude! O poder é apreendido como escândalo. A coordenação se apropria do espaço reservado ao fantasma piramidal. As relações instituídas apresentam uma sucessão de níveis hierárquicos em que cabe ao superir uma zona reservada e onde o subalterno não pode entrar.
O pai que é proprietário do corpo da mulher, interdito aos filhos, o senhor feudal que se apropria da terra, o professor que dispõe soberanamente de um campo de conhecimentos. O usufruto dessa situação pressupõe a aceitação do papel de pai, proprietário, chefe, professor. Da mesma maneira que o senhor exercia poder absoluto sobre suas terras, os detentores da informação instalam um domínio confortável como “na Régie Renault, com a introdução de uma nova máquina, só o contramestre pode compreender o funcionamento”.[10]
O sistema cultural assiste à ruptura entre apalavras sagrada e profana. Não é mais Deus que dispõe do monopólio do verbo nem a Igreja de sua interpretação. A ciência ocupa hoje o lugar do Verbo Divino. A casta dos cientistas substituiu a hierarquia eclesiástica como elemento mediador entre a palavra superior e a coletividade humana.
O antagonismo “puro” e “impuro” encontra-se entre os chamados trabalhos “sujos” e “limpos” como nas relações entre o trabalho manual e intelectual. A organização através dos seus psicólogos industriais, afirma a possibilidade de vencer  a impureza. Os esgotos podem ser transformados em matéria sã. A guerra limpa, tecnologicamente definida, coexiste com a suja, rústica.
A eficiência da impureza consiste na delimitação das áreas do proibido. Os impuros são intocáveis, só podem ser destruídos. O nazismo significou a dominação totalitária dos puros sobre os impuros. Nas organizações altamente burocratizadas, instituições totais, o impuro é segregado por obstáculos como muros altos, florestas, portas de ferro.
Os contatos com o exterior são monopolizados pela direção. O subalterno não tem contatos com os circuitos externos da empresa, só os responsáveis podem manter tais relacionamentos. Caso haja qualquer caso de espionagem industrial, os subalternos têm menor chance de sair-se bem que os elementos de staff privilegiados por seus contatos com o exterior, que ampliam as possibilidades de manobras dos mesmos.
 Na medida em que a organização burocrática delimita as zonas de impureza interna e externa, ela se assegura uma certa dinâmica energética. O funcionamento é assegurado – como em algumas organizações políticas – pela luta contra os sabotadores do interior e os inimigos do exterior. A empresa só evolui na luta contra as disfunções do mercado. Haverá relação entre o domínio do impuro pelas organizações e o grau de sua eficiência? O nazismo, que definia como fim explícito reduzir as raças impuras, constrói organizações burocraticamente estruturadas para atingir tais objetivos: AS, SS, KL. No entanto, o quotidiano mostra uma constante preocupação em jugular o impuro. A impureza constitui o centro do discurso das organizações industriais. É um dos temas favoritos da manipulação publicitária. Não há nenhum anuncio de detergente que não avalize suas qualidades na cruzada contra o impuro. O bom funcionamento organizacional implica a depuração periódica.
Paralelamente a este processo, se instaura o processo da construção de um imaginário, por mediação da organização, em direção a seus clientes. O campo publicitário organizacional apresenta um universo em que a organização se constitui como prestação de serviços e para a qual o cliente tem sempre razão e manda. A organização é atenciosa e asséptica, benevolente com os caprichos da clientela. O desejo se constitui em elemento fundante da conduta do cliente. Nada lhe é recusado, tudo é permitido; ele pode satisfazer-se na sua imediatez e plenitude. Ela substitui o espetáculo do lucro pela gratuidade. Para tal, constitui uma área onde o dom[11] tem cidadania, pequenos bônus anexos às mercadorias, que possuem uma importância básica na definição da marca. As adaptações ao mercado, inerente às organizações lucrativas, se dão ao lado de um processo de regeneração das mercadorias e serviços propostos à clientela. Quanto à mão-de-obra, o termo “participação” parece ter virtudes suficientes para ancorá-la à organização com muito mais firmeza que o servo à gleba.
A vida só é possível no processo organizacional. O imaginário enquadrado pela organização transforma-se num relutante apelo burocrático, com todo o “pathos” de um ofício de repartição pública, imaginem Sófocles amanuense!
O fato é que a mão-de-obra sai da empresa para entrar no sindicato burocratizado, ou freqüenta a Igreja ou freqüenta um partido, os dois estruturados em forma de pirâmide, com níveis de staff e linha, com dogmáticas rígidas interpretadas legitimamente por outros elementos treinados nesse mister, dispondo dos títulos reconhecidos. Em suma, o ritmo vital é regulado pela escola, exército, empresa, hospital, agência de viagens e, finalmente, o asilo.
Nas instituições totais é o mesmo grupo de co-participantes que controla tudo sob a mesma autoridade, conforme um plano racional geral, seja ele elaborado pelo staff do presídio, do manicômio, do convento ou do colégio interno.
Nessas instituições, há o grupo maior cuja atividade fica confinada aos limites da organização total e o pessoal staff que mantém horário de 8 horas de trabalho e contatos com o exterior. É característica a barreira linha/staff com estereótipos negativos ou agressivos. Há um grande hiato entre eles, grande distancia social.
Enquanto o operário recebe um salário e tem a liberdade de gastá-lo em qualquer ambiente, o mesmo não se dá com o interno das instituições totais que assumem a responsabilidade por ele e exigem algum ou pouco trabalho. Geralmente está incorporado a sistemas de pequenos pagamentos cerimoniosos como, por exemplo, a ração semanal de fumo ou presentes de Natal que motivam os doentes mentais a continuarem em suas ocupações. Em algumas prisões, navios, campos de cortes de árvores é possível alguma poupança forcada: o indivíduo recebe o que lhe é devido após cumprir a pena.
As instituições totais desenvolvem mecanismos de despojamento e mortificação do ego: decisões autônomas são eliminadas mediante a programação coletiva das atividades diárias.
A estrutura da sociedade é escalar, ela articula-se com o aspecto informal definido como regras do local que definem formalmente níveis de proibições. Em troca, o staff oferece recompensas e privilégios, que se constituem em modos peculiares às instituições totais. Receber visitas, fumar um cigarro,o dia da folga, sua negação por qualquer transgressão cometida aos regulamentos, assume um aspecto vital no quotidiano interno da instituição total.
No entanto,nas instituições totais é possível que se dê este processo:os guardas não comunicam infrações aos regulamentos, transmitem informações proibidas aos presidiários, negligenciam as exigências elementares de segurança e aliam aos presidiários em criticas francas aos funcionários da alta burocracia. Muitos podem ter em si uma ambivalência básica em relação aos detentos sob sua guarda: embora condenados, muitos criminosos representam sucesso, em termos de um sistema mundano de valores (alto prestígio, notoriedade e riqueza) e o guarda mal remunerado poderá sentir em associar-se a laguem tão famoso.
Pode dar-se a corrupção pela instituição total através da reciprocidade no caso em que o controle da docilidade do presidiário resida menos nas sanções negativas – o que representa encargos para a administração da prisão – mas na consecução de um certo nível de cooperação voluntária do presidiário. Em troca, infrações secundárias aos regulamentos são ignoradas.

Conclusões

No interior o sistema social as instituições educacionais e seus sacerdotes, os professores, desenvolvem um trabalho contínuo e sutil para a conservação da estrutura de poder e, em geral,d a desigualdade social existente. Duas são as principais funções conservadoras atribuídas à escola e aos professores: a exclusão do sistema de ensino dos alunos das classes inferiores e a que definimos como socialização à subordinação, isto é, a transmissão ao jovem de valores compatíveis com seu futuro papel subordinado.[12]
Examinemos a primeira conclusão. Uma frase repetida continuamente pelos sociólogos liberais é que a escola constitui o mais importante canal de ascensão social. tal proposição é exata na medida em que “a atribuição da posição social é hoje cada vez mais ligada ao sistema de escolaridade”. Mas é errada e mistificadora, se se entender que a escola favoreça ou promova a mobilidade social. Eis que há fortíssimos obstáculos que impedem a inteligência e a capacidade de manifestar-se, privilegiando mais a cumplicidade com o sistema, com o critério de ascensão social.
É importante lambarmos que a família conserva grande parte de usa importância como base inicial da seleção social dos indivíduos, ela transmite ao herdeiro, ao filho, não somente o capital financeiro mas também o capital cultural. Esse capital cultural tem sua legitimidade definida através dos títulos escolares.
O importante é que se desenvolve num sistema de ensino pré-universitário unificado, onde o sistema escolar convence o aluno de origem popular de que é necessário competir para atingir altos escalões, e que “seu destino social depende antes de mais nada de sua natureza individual”[13]. Paralelamente, a escola desenvolve o processo de socialização, ou seja, da aceitação do existente como o desejável. A dificuldade do corpo professoral em adaptar-se às mudanças sócio-culturais pode implicar na sua visualização, não como um corpo que reproduz valores dominantes, mas sim defensor de um patrimônio valorativo superado, qual seja, de vestal da classe média.

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Bibliografia

BENJAMIM, R. L’ Univers des Instituteurs, Paris, Ed. De Minuit, 1964.
BOTAI, Giuseppe. La Carta dellla Scuola, Milão, Ed. Mondadori, 1941.
BOURDIEU, P. L’ École Conservatrice, in Revue Française de Sociologie, VII, 1966, pp. 325-347
DAHRENDORF, R. Arbeiterkinder an deutschen Universitaten, Tubingen, J. C. B. Mohr, 1965.
DEI, Marcello. Le vestali della classe media, Bolonha, Societá Editrice, 1972.
ESTABLET. L’École capitaliste en France. Paris, Ed. Marpéro, 1971.
FERRER, Francisco. La Escuela Moderna. Montividéu, Ed. Solidaridad, 1960.
GOFFMAN, Erwin. Presídios, Manicômios e Conventos. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1974.
KEACH, E. T. Education and social crisis, Nova York, J. Wiley, 1966.
LOBROT, M. A Pedagogia Institucional. Lisboa, Ed. Iniciativas editoriais, 1966.
MAUSS, M. Oeuvres, Vol. I, II, III, Ed. PUF, França 1969.
SCHEFER, G. Das Gesellschaftsbild des Gymnasiallehrers, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1969.
SCHUH, E. Der Volksschulleher. Berlin, H. Schrodel Verlag, 1962.
THOMPSON, V. As modernas organizações, São Paulo, Ed. F. Bastos
TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e Ideologia, São Paulo, Ed. Ática, 1974.
TROPP, A. The School Teacher, Londres, 1957.

[1] O taylorismo tem como finalidade: eliminar o poder de decisão do operário e tornar o operário uma máquina.
A organização moderna é a instituição onde se realiza a relação de produção que se constitui a característica de todo sistema social, é o mecanismo de exploração e se rege pela coerção e manipulação. A substância a organização não é um conjunto funcional, mas sim, a exploração, o boicote e a coerção.
[2] Para Simon, a hierarquia é necessária para alcançar um fim comum. Ela tende a tornar-se mais rígida quanto mais complexa é a organização. Sustenta que, da mesma maneira como no mecanismo de mercado, o fim de todos coincide com o de cada um.
Acha-se como pressuposto um certo tipo de racionalidade que os utilitários do século passado sustentavam como universal. No entanto, os fins são formulados pela cúpula, a teoria da organização pretende não discutir o problema central do poder, o que explica também o êxito do estudo referente aos “pequenos grupos”, onde o conformismo constitui fonte de felicidade.
[3] O processo acima define a hegemonia do autoritarismo na escola, onde a palavra autorizada é a do mestre, enunciada pelo programa e pelas instruções sobressalentes. O caderno funciona como registro e permite a inspeção a inspeção e o controle da conformidade. Os dispositivos audiovisuais permitem difundir programas pré-fabricados  que correspondem a um discurso escolar estritamente subordinado à organização!
* M. Lobrot C. A. Pedagogia Institucional, p. 161, Lisboa, Editora Iniciativas Editoriais.
[4] A convicção de que o prestígio profissional está progressivamente diminuindo é confirmado por pesquisas realizadas nos EUA, Itália, Alemanha, no que se refere a professores de nível ginasial, conforme G. SCHEFER, Das Geselleschaftsbild des Gymnasiallehrers, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1969, especialmente pp. 43-50.
[5] O discurso sobre a produção é reservado aos tecnocratas, o discurso sobre as relações sociais é reservado aos políticos, o discurso da mudança é reservado aos revolucionários profissionais, o discurso sobre o sexo é reservado para a Educação Sexual e o discurso sobre o corpo é de âmbito dos médicos.
[6] Muitas pesquisas desenvolvidas em diversos países demonstraram que o excessivo contingente de alunos por classe e uma das maiores fontes de insatisfação dos professores, conforme E. SCHUC, Der Volksschullehrer Strofakto en in Berufsleben und ihre Ruckwirkung auf die Einstellung im Berugf, Berlim, H. Schodel Verlag, 1962. Nessa pesquisa que envolveu 508 professores alemães, as maiores fontes de insatisfação provinham do excessivo número de alunos por classe, baixo prestígio social do ensino e escassa possibilidade de carreira. Resultados idênticos no que respeita à França foram colhidos por R. BENJAMIM, L’ Univers des Instituteurs, Les Editions de Minuit, 1964.
[7] A Europa caracteriza-se na educação por um sistema de mobilidade cooptativa. Os alunos das classes inferiores são eliminados de diversas formas. O simples fato da escola, cujo recrutamento de alunos estrutura-se na classe média e alta, estar próxima à habitação do aluno, formar classes pequenas e possuir material didático, coloca os alunos das classes pobres em situação desvantajosa, como ponto de partida. Há uma escola média para a formação da classe dirigente e outra técnica sem possibilidade de chegar ao nível superior, para a classe operária. Isso foi teorizado por Giuseppe BOTAI, La Carta della Scuola, Milão, 1941, p. 28, ed. reformulada.
[8] Pré-requisitos necessários ao professor inglês do século XVIII: “Ele deve ser: 1) Membro da Igreja da Inglaterra, de vida austera, idade não inferior a 25 anos; 2) Dedicado à Santa Comunhão; 3) Capaz de autodomínio de si e das paixões; 4) De caráter submisso e conduta humilde; 5) possuir bom talento didático; 6) Bem informado dos princípios e fundamentos da religião cristã com capacidade para enunciá-los ante o ministro da paróquia ou ao Bispo mediante exame escrito; 7) Possuir boa caligrafia e sólidos fundamentos nas Matemáticas; 8) Membro de um família de ilibada conduta moral e 9) Contar com a aprovação do ministro da paróquia (sendo um fiel) antes de procurar autorização do Bispo.” A. TROPP, The School Teacher, Londres, Heinemann, 1957.
* MAUSS, M, Sociologie et Antropologie, Ed. PUF, França.
[9] Segundo o psicanalista Oto Fenichel – escotomizar significa não querer enxergar, não admitir, negar magicamente o real.
[10] D. MOTHÉ, Militant chez Renault, Ed. du Seuil, Paris, p. 10.
[11] “O uso contínuo do conceito do dom ou dos dotes intelectuais constitui um pretexto para desviar o discurso das causas sociais das menores possibilidades de instrução que têm na Alemanha os filhos de operários,remontando-as a pretensas causas naturais.” R.DAHRENDORF, Arbeitenkinder an deutschen Universitaten, (J. C. Mohr, Tubingen, 1965, p. 29)
[12] A insensibilidade ante a desigualdade social e seu papel no comportamento do aluno constitui também característica do ensino nos países desenvolvidos. Veja-se H. ULIBARRI, Teacher Awareness of Sociocultural Differences in Multicultural Classrooms, in E. T. Keach, R. Fulton, F. E. Gardner (eds.), Education and Social Crisis, Nova York, J. Willley, 1967, pp. 139-144.
[13] P. BOURDIEU, L’École Conservatrice”, p. 342, in Revue Française de Sociologie, VII, 1966, pp. 325-347.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE MAX WEBER

INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE MAX WEBER*

Maurício Tragtenberg


Pondo-se de lado alguns trabalhos precursores, como os de Maquiavel (1469-1527) e Montesquieu (1689-1755), o estudo científico dos fatos humanos somente começou a se constituir em meados do século XIX. Nessa época, assistia-se ao triunfo dos métodos das ciências naturais, concretizadas nas radicais transformações da vida material do homem, operadas pela Revolução Industrial. Diante dessa comprovação inequívoca da fecundidade do caminho metodológico apontado por Galileu (1564-1642) e outros, alguns pensadores que procuravam conhecer cientificamente os fatos humanos passaram a abordá-los segundo as coordenadas das ciências naturais. Outros, ao contrário, afirmando a peculiaridade do fato humano e a consequente necessidade de uma metodologia própria. Essa metodologia deveria levar em consideração o fato de que o conhecimento dos fenômenos naturais é um conhecimento de algo externo ao próprio homem, enquanto nas ciências sociais o que se procura conhecer é a própria experiência humana. De acordo com a distinção entre experiência externa e experiência interna, poder-se-ia distinguir uma série de contrastes metodológicos entre os dois grupos de ciências. As ciências exatas partiriam da observação sensível e seriam experimentais, procurando obter dados mensuráveis e regularidades estatísticas que conduzissem à formulação de leis de caráter matemático.

As ciências humanas, ao contrário, dizendo respeito à própria experiência humana, seriam introspectivas, utilizando a intuição direta dos fatos, e procurariam atingir não generalidades de caráter matemático, mas descrições qualitativas de tipos e formas fundamentais da vida do espírito.

Os positivistas (como eram chamados os teóricos da identidade fundamental entre as ciências exatas e as ciências humanas) tinham suas origens sobretudo na tradição empirista inglesa que remonta a Francis Bacon (1561-1626) e encontrou expressão em David Hume (1711-1776), nos utilitaristas do século XIX e outros. Nessa linha metodológica de abordagem dos fatos humanos se colocariam Augusto Comte (1798-1857) e Émile Durkheim (1858-1917), este considerado por muitos o fundador da sociologia como disciplina científica. Os antipositivistas, adeptos da distinção entre ciências humanas e ciências naturais, foram sobretudo os alemães, vinculados ao idealismo dos filósofos da época do Romantismo, principalmente Hegel (1770-1831) e Schleiermacher (1768-1834). Os principais representantes dessa orientação foram os neokantianos Wilhelm Dilthey (1833-1911), Wilhelm Windelband (1848-1915) e Heinrich Rickert (1863-1936). Dilthey estabeleceu uma distinção que fez fortuna: entre explicação (erklären) e compreensão (verstehen). O modo explicativo seria característico das ciências naturais, que procuram o relacionamento causal entre os fenômenos. A compreensão seria o modo típico de proceder das ciências humanas, que não estudam fatos que possam ser explicados propriamente, mas visam aos processos permanentemente vivos da experiência humana e procuram extrair deles seu sentido (Sinn). Os sentidos (ou significados) são dados, segundo Dilthey, na própria experiência do investigador, e poderiam ser empaticamente apreendidos na experiência dos outros.

Dilthey (como Windelband e Rickert), contudo, foi sobretudo filósofo e historiador e não, propriamente, cientista social, no sentido que a expressão ganharia no século XX. Outros levaram o método da compreensão ao estudo de fatos humanos particulares, constituindo diversas disciplinas compreensivas. Na sociologia, a tarefa ficaria reservada a Max Weber.

Uma educação humanista apurada

Max Weber nasceu e teve sua formação intelectual no período em que as primeiras disputas sobre a metodologia das ciências sociais começavam a surgir na Europa, sobretudo em seu país, a Alemanha. Filho de uma família da alta classe média, Weber encontrou em sua casa uma atmosfera intelectualmente estimulante. Seu pai era um conhecido advogado e desde cedo orientou-o no sentido das humanidades. Weber recebeu excelente educação secundária em línguas, história e literatura clássica. Em 1882, começou os estudos superiores em Heidelberg, continuando-os em Göttingen e Berlim, em cujas universidades dedicou-se simultaneamente à economia, à história, à filosofia e ao direito. Concluído o curso, trabalhou na Universidade de Berlim, na qualidade de livre-docente, ao mesmo tempo que servia como assessor do governo. Em 1893, casou-se e, no ano seguinte, tornou-se professor de economia na Universidade de Freiburg, da qual se transferiu para a de Heidelberg, em 1896. Dois anos depois, sofreu sérias perturbações nervosas, que o levaram a deixar os trabalhos docentes, só voltando à atividade em 1903, na qualidade de coeditor do Arquivo de Ciências Sociais (Archiv für Sozialwissenschaft), publicação extremamente importante no desenvolvimento dos estudos sociológicos na Alemanha. A partir dessa época, Weber somente deu aulas particulares, salvo em algumas ocasiões, em que proferiu conferências nas universidades de Viena e Munique, nos anos que precederam sua morte, em 1920.

Compreensão e explicação

Dentro das coordenadas metodológicas que se opunham à assimilação das ciências sociais aos quadros teóricos das ciências naturais, Weber concebe o objeto da sociologia como, fundamentalmente, “a captação da relação de sentido” da ação humana. Em outras palavras, conhecer um fenômeno social seria extrair o conteúdo simbólico da ação ou ações que o configuram. Por ação, Weber entende “aquela cujo sentido pensado pelo sujeito ou sujeitos é referido ao comportamento dos outros, orientando-se por ele o seu comportamento”. Tal colocação do problema de como se abordar o fato significa que não é possível propriamente explicá-lo como resultado de um relacionamento de causas e efeitos (procedimento das ciências naturais), mas compreendê-lo como fato carregado de sentido, isto é, como algo que aponta para outros fatos e somente em função dos quais poderia ser conhecido em toda a sua amplitude.

O método compreensivo, defendido por Weber, consiste em entender o sentido que as ações de um indivíduo contêm e não apenas o aspecto exterior dessas mesmas ações. Se, por exemplo, uma pessoa dá a outra um pedaço de papel, esse fato, em si mesmo, é irrelevante para o cientista social. Somente quando se sabe que a primeira pessoa deu o papel para a outra como forma de saldar uma dívida (o pedaço de papel é um cheque) é que se está diante de um fato propriamente humano, ou seja, de uma ação carregada de sentido. O fato em questão não se esgota em si mesmo e aponta para todo um complexo de significações sociais, na medida em que as duas pessoas envolvidas atribuem ao pedaço de papel a função de servir como meio de troca ou pagamento; além disso, essa função é reconhecida por uma comunidade maior de pessoas.

Segundo Weber, a captação desses sentidos contidos nas ações humanas não poderia ser realizada por meio, exclusivamente, dos procedimentos metodológicos das ciências naturais, embora a rigorosa observação dos fatos (como nas ciências naturais) seja essencial para o cientista social. Contudo, Weber não pretende cavar um abismo entre os dois grupos de ciências. Segundo ele, a consideração de que os fenômenos obedecem a uma regularidade causal envolve referência a um mesmo esquema lógico de prova, tanto nas ciências naturais quanto nas humanas. Entretanto, se a lógica da explicação causal é idêntica, o mesmo não se poderia dizer dos tipos de leis gerais a serem formulados para cada um dos dois grupos de disciplinas. As leis sociais, para Weber, estabelecem relações causais em termos de regras de probabilidades, segundo as quais a determinados processos devem seguir-se, ou ocorrer simultaneamente, outros. Essas leis referem-se a construções de “comportamento com sentido” e servem para explicar processos particulares. Para que isso seja possível, Weber defende a utilização dos chamados “tipos ideais”, que representam o primeiro nível de generalização de conceitos abstratos e, correspondendo às exigências lógicas da prova, estão intimamente ligados à realidade concreta particular.

O legal e o típico

O conceito de tipo ideal corresponde, no pensamento weberiano, a um processo de conceituação que abstrai de fenômenos concretos o que existe de particular, constituindo assim um conceito individualizante ou, nas palavras do próprio Weber, um “conceito histórico-concreto”. A ênfase na caracterização sistemática dos padrões individuais concretos (característica das ciências humanas) opõe a conceituação típico-ideal à conceituação generalizadora, tal como esta é conhecida nas ciências naturais.

A conceituação generalizadora, como revela a própria expressão, retira do fenômeno concreto aquilo que ele tem de geral, isto é, as uniformidades e regularidades observadas em diferentes fenômenos constitutivos de uma mesma classe. A relação entre o conceito genérico e o fenômeno concreto é de natureza tal que permite classificar cada fenômeno particular de acordo com os traços gerais apresentados pelo mesmo, considerando acidental tudo o que não se enquadre dentro da generalidade. Além disso, a conceituação generalizadora considera o fenômeno particular um caso cujas características gerais podem ser deduzidas de uma lei.

A conceituação típico-ideal chega a resultados diferentes da conceituação generalizadora. O tipo ideal, segundo Weber, expõe como se desenvolveria uma forma particular de ação social se o fizesse racionalmente em direção a um fim e se fosse orientada de forma a atingir um e somente um fim. Assim, o tipo ideal não descreveria um curso concreto de ação, mas um desenvolvimento normativamente ideal, isto é, um curso de ação “objetivamente possível”. O tipo ideal é um conceito vazio de conteúdo real: ele depura as propriedades dos fenômenos reais desencarnando-os pela análise, para depois reconstruí-los. Quando se trata de tipos complexos (formados por várias propriedades), essa reconstrução assume a forma de síntese, que não recupera os fenômenos em sua real concreção, mas que os idealiza em uma articulação significativa de abstrações. Desse modo, se constitui uma “pauta de contrastação”, que permite situar os fenômenos reais em sua relatividade. Por conseguinte, o tipo ideal não constitui nem uma hipótese nem uma proposição e, assim, não pode ser falso nem verdadeiro, mas válido ou não-válido, de acordo com sua utilidade para a compreensão significativa dos acontecimentos estudados pelo investigador.

No que se refere à aplicação do tipo ideal no tratamento da realidade, ela se dá de dois modos. O primeiro é um processo de contrastação conceitual que permite simplesmente apreender os fatos segundo sua maior ou menor aproximação ao tipo ideal. O segundo consiste na formulação de hipóteses explicativas. Por exemplo: para a explicação de um pânico na bolsa de valores, seria possível, em primeiro lugar, supor como se desenvolveria o fenômeno na ausência de quaisquer sentimentos irracionais; somente depois se poderia introduzir tais sentimentos como fatores de perturbação. Da mesma forma se poderia proceder para a explicação de uma ação militar ou política. Primeiro se fixaria, hipoteticamente, como se teria desenvolvido a ação se todas as intenções dos participantes fossem conhecidas e se a escolha dos meios por parte dos mesmos tivesse sido orientada de maneira rigorosamente racional em relação a certo fim. Somente assim se poderia atribuir os desvios aos fatores irracionais.

Nos exemplos acima é patente a dicotomia estabelecida por Weber entre o racional e o irracional, ambos conceitos fundamentais de sua metodologia. Para Weber, uma ação é racional quando cumpre duas condições. Em primeiro lugar, uma ação é racional na medida em que é orientada para um objetivo claramente formulado, ou para um conjunto de valores, também claramente formulados e logicamente consistentes. Em segundo lugar, uma ação é racional quando os meios escolhidos para se atingir o objetivo são os mais adequados.

Uma vez de posse desses instrumentos analíticos, formulados para a explicação da realidade social concreta ou, mais exatamente, de uma porção dessa realidade, Weber elabora um sistema compreensivo de conceitos, estabelecendo uma terminologia precisa como tarefa preliminar para a análise das inter-relações entre os fenômenos sociais. De acordo com o vocabulário weberiano, são quatro os tipos de ação que cumpre distinguir claramente: ação racional em relação a fins, ação racional em relação a valores, ação afetiva e ação tradicional. Esta última, baseada no hábito, está na fronteira do que pode ser considerado ação e faz Weber chamar a atenção para o problema de fluidez dos limites, isto é, para a virtual impossibilidade de se encontrarem “ações puras”. Em outros termos, segundo Weber, muito raramente a ação social orienta-se exclusivamente conforme um ou outro dos quatro tipos. Do mesmo modo, essas formas de orientação não podem ser consideradas exaustivas. Seriam tipos puramente conceituais, construídos para fins de análise sociológica, jamais encontrando-se na realidade em toda a sua pureza; na maior parte dos casos, os quatro tipos de ação encontram-se misturados. Somente os resultados que com eles se obtenham na análise da realidade social podem dar a medida de sua conveniência. Para qualquer um desses tipos tanto seria possível encontrar fenômenos sociais que poderiam ser incluídos neles, quanto se poderia também deparar com fatos limítrofes entre um e outro tipo. Entretanto, observa Weber, essa fluidez só pode ser claramente percebida quando os próprios conceitos tipológicos não são fluidos e estabelecem fronteiras rígidas entre um e outro. Um conceito bem definido estabelece nitidamente propriedades cuja presença nos fenômenos sociais permite diferenciar um fenômeno de outro; estes, contudo, raramente podem ser classificados de forma rígida.

O sistema de tipos ideais

Na primeira parte de Economia e Sociedade, Max Weber expõe seu sistema de tipos ideais, entre os quais os de lei, democracia, capitalismo, feudalismo, sociedade, burocracia, patrimonialismo, sultanismo. Todos esses tipos ideais são apresentados pelo autor como conceitos definidos conforme critérios pessoais, isto é, trata-se de conceituações do que ele entende pelo termo empregado, de forma a que o leitor perceba claramente do que ele está falando. O importante nessa tipologia reside no meticuloso cuidado com que Weber articula suas definições e na maneira sistemática com que esses conceitos são relacionados uns aos outros. A partir dos conceitos mais gerais do comportamento social e das relações sociais, Weber formula novos conceitos mais específicos, pormenorizando cada vez mais as características concretas.

Sua abordagem em termos de tipos ideais coloca-se em oposição, por um lado, à explicação estrutural dos fenômenos, e, por outro, à perspectiva que vê os fenômenos como entidades qualitativamente diferentes. Para Weber, as singularidades históricas resultam de combinações específicas de fatores gerais que, se isolados, são quantificáveis, de tal modo que os mesmos elementos podem ser vistos numa série de outras combinações singulares. Tudo aquilo que se afirma de uma ação concreta, seus graus de adequação de sentido, sua explicação compreensiva e causal, seriam hipóteses suscetíveis de verificação. Para Weber, a interpretação causal correta de uma ação concreta significa que “o desenvolvimento externo e o motivo da ação foram conhecidos de modo certo e, ao mesmo tempo, compreendidos com sentido em sua relação”. Por outro lado, a interpretação causal correta de uma ação típica significa que o acontecimento considerado típico se oferece com adequação de sentido e pode ser comprovado como causalmente adequado, pelo menos em algum grau.

O capitalismo é protestante?

As soluções encontradas por Weber para os intrincados problemas metodológicos que ocuparam a atenção dos cientistas sociais do começo do século XX permitiram-lhe lançar novas luzes sobre vários problemas sociais e históricos, e fazer contribuições extremamente importantes para as ciências sociais. Particularmente relevantes nesse sentido foram seus estudos sobre a sociologia da religião, mais exatamente suas interpretações sobre as relações entre as ideias e atitudes religiosas, por um lado, e as atividades e organização econômica correspondentes, por outro.

Esses estudos de Weber, embora incompletos, foram publicados nos três volumes de sua Sociologia da Religião. A linha mestra dessa obra é constituída pelo exame dos aspectos mais importantes da ordem social e econômica do mundo ocidental, nas várias etapas de seu desenvolvimento histórico. Esse problema já se tinha colocado para outros pensadores anteriores a Weber, dentre os quais Karl Marx (1818-1883), cuja obra, além de seu caráter teórico, constituía elemento fundamental para a luta econômica e política dos partidos operários, por ele mesmo criados. Por essas razões, a pergunta que os sociólogos alemães se faziam era se o materialismo histórico formulado por Marx era ou não o verdadeiro, ao transformar o fator econômico no elemento determinante de todas as estruturas sociais e culturais, inclusive a religião. Inúmeros trabalhos foram escritos para resolver o problema, substituindo-se o fator econômico como dominante por outros fatores, tais como raça, clima, topografia, ideias filosóficas, poder político. Alguns autores, como Whilhelm Dilthey, Ernst Troeltsch (1865-1923) e Werner Sombart (1863-1941), já se tinham orientado no sentido de ressaltar a influência das ideias e das convicções éticas como fatores determinantes, e chegaram à conclusão de que o moderno capitalismo não poderia ter surgido sem uma mudança espiritual básica, como aquela que ocorreu nos fins da Idade Média. Contudo, somente com os trabalhos de Weber foi possível elaborar uma verdadeira teoria geral capaz de confrontar-se com a de Marx.

A primeira ideia que ocorreu a Weber na elaboração dessa teoria foi a de que, para conhecer corretamente a causa ou causas do surgimento do capitalismo, era necessário fazer um estudo comparativo entre as várias sociedades do mundo ocidental (único lugar em que o capitalismo, como um tipo ideal, tinha surgido) e as outras civilizações, principalmente as do Oriente, onde nada de semelhante ao capitalismo ocidental tinha aparecido. Depois de exaustivas análises nesse sentido, Weber foi conduzido à tese de que a explicação para o fato deveria ser encontrada na íntima vinculação do capitalismo com o protestantismo: “Qualquer observação da estatística ocupacional de um país de composição religiosa mista traz à luz, com notável frequência, um fenômeno que já tem provocado repetidas discussões na imprensa e literatura católicas e em congressos católicos na Alemanha: o fato de os líderes do mundo dos negócios e proprietários do capital, assim como os níveis mais altos de mão-de-obra qualificada, principalmente o pessoal técnico e comercialmente especializado das modernas empresas, serem preponderantemente protestantes”.

A partir dessa afirmação, Weber coloca uma série de hipóteses referentes a fatores que poderiam explicar o fato. Analisando detidamente esses fatores, Weber elimina-os, um a um, mediante exemplos históricos, e chega à conclusão final de que os protestantes, tanto como classe dirigente, quanto como classe dirigida, seja como maioria, seja como minoria, sempre teriam demonstrado tendência específica para o racionalismo econômico. A razão desse fato deveria, portanto, ser buscada no caráter intrínseco e permanente de suas crenças religiosas e não apenas em suas temporárias situações externas na história e na política.

Uma vez indicado o papel que as crenças religiosas teriam exercido na gênese do espírito capitalista, Weber propõe-se a investigar quais os elementos dessas crenças que atuaram no sentido indicado e procura definir o que entende por “espírito do capitalismo”. Este é entendido por Weber como constituído fundamentalmente por uma ética peculiar, que pode ser exemplificada muito nitidamente por trechos de discursos de Benjamin Franklin (1706-1790), um dos líderes da independência dos Estados Unidos. Benjamin Franklin, representante típico da mentalidade dos colonos americanos e do espírito pequeno-burguês, afirma em seus discursos que “ganhar dinheiro dentro da ordem econômica moderna é, enquanto isso for feito legalmente, o resultado e a expressão da virtude e da eficiência de uma vocação”. Segundo a interpretação dada por Weber a esse texto, Benjamin Franklin expressa um utilitarismo, mas um utilitarismo com forte conteúdo ético, na medida em que o aumento de capital é considerado um fim em si mesmo e, sobretudo, um dever do indivíduo. O aspecto mais interessante desse utilitarismo residiria no fato de que a ética de obtenção de mais e mais dinheiro é combinada com o estrito afastamento de todo gozo espontâneo da vida.

A questão seguinte colocada por Weber diz respeito aos fatores que teriam levado a transformar-se em vocação uma atividade que, anteriormente ao advento do capitalismo, era, na melhor das hipóteses, apenas tolerada. O conceito de vocação como valorização do cumprimento do dever dentro das profissões seculares Weber encontra expresso nos escritos de Martinho Lutero (1483-1546), a partir do qual esse conceito se tornou o dogma central de todos os ramos do protestantismo. Em Lutero, contudo, o conceito de vocação teria permanecido em sua forma tradicional, isto é, algo aceito como ordem divina à qual cada indivíduo deveria adaptar-se. Nesse caso, o resultado ético, segundo Weber, é inteiramente negativo, levando à submissão. O luteranismo, portanto, não poderia ter sido a razão explicativa do espírito do capitalismo.

Weber volta-se então para outras formas de protestantismo diversas do luteranismo, em especial para o calvinismo e outras seitas, cujo elemento básico era o profundo isolamento espiritual do indivíduo em relação a seu Deus, o que, na prática, significava a racionalização do mundo e a eliminação do pensamento mágico como meio de salvação. Segundo o calvinismo, somente uma vida guiada pela reflexão contínua poderia obter vitória sobre o estado natural, e foi essa racionalização que deu à fé reformada uma tendência ascética.

Com o objetivo de relacionar as ideias religiosas fundamentais do protestantismo com as máximas da vida econômica capitalista, Weber analisa alguns pontos fundamentais da ética calvinista, como a afirmação de que “o trabalho constitui, antes de mais nada, a própria finalidade da vida”. Outra ideia no mesmo sentido estaria contida na máxima dos puritanos, segundo a qual “a vida profissional do homem é que lhe dá uma prova de seu estado de graça para sua consciência, que se expressa no zelo e no método, fazendo com que ele consiga cumprir sua vocação”. Por meio desses exemplos, Weber mostra que o ascetismo secular do protestantismo “libertava psicologicamente a aquisição de bens da ética tradicional, rompendo os grilhões da ânsia de lucro, com o que não apenas a legalizou, como também a considerou diretamente desejada por Deus”. Em síntese, a tese de Weber afirma que a consideração do trabalho (entendido como vocação constante e sistemática) como o mais alto instrumento de ascese e o mais seguro meio de preservação da redenção da fé e do homem deve ter sido a mais poderosa alavanca da expressão dessa concepção de vida constituída pelo espírito do capitalismo.

É necessário, contudo, salientar que Weber em nenhum momento considera o espírito do capitalismo uma pura consequência da Reforma protestante. O sentido que norteia sua análise é antes uma proposta de investigar em que medida as influências religiosas participaram da moldagem qualitativa do espírito do capitalismo. Percorrendo o caminho inverso, Weber propõe-se também a compreender melhor o sentido do protestantismo, mediante o estudo dos aspectos fundamentais do sistema econômico capitalista. Tendo em vista a grande confusão existente no campo das influências entre as bases materiais, as formas de organização social e política e os conteúdos espirituais da Reforma, Weber salientou que essas influências só poderiam ser confirmadas por meio de exaustivas investigações dos pontos em que realmente teriam ocorrido correlações entre o movimento religioso e a ética vocacional. Com isso “se poderá avaliar” — diz o próprio Weber — “em que medida os fenômenos culturais contemporâneos se originam historicamente em motivos religiosos e em que medida podem ser relacionados com eles”.

Autoridade e legitimidade

A aplicação da metodologia compreensiva à análise dos fenômenos históricos e sociais, por parte de Weber, não se limitou às relações entre o protestantismo e o sistema capitalista. Inúmeros foram seus trabalhos de investigação empírica sobre assuntos econômicos e políticos. Entre os primeiros, salientam-se A Situação dos Trabalhadores Agrícolas no Elba e A Psicofisiologia do Trabalho Industrial. Entre os segundos, devem ser ressaltadas suas análises críticas da seleção burocrática dos líderes políticos na Alemanha dos Kaiser Guilherme I e II e da despolitização levada a cabo com a hegemonia dos burocratas. Para a teoria política em geral, contudo, foram mais importantes os conceitos e categorias interpretativas que formulou e que se tornaram clássicos nas ciências sociais.

Weber distingue no conceito de política duas acepções, uma geral e outra restrita. No sentido mais amplo, política é entendida por ele como “qualquer tipo de liderança independente em ação”. No sentido restrito, política seria liderança de um tipo de associação específica; em outras palavras, tratar-se-ia da liderança do Estado. Este, por sua vez, é defendido por Weber como “uma comunidade humana que pretende o monopólio do uso legítimo da força física dentro de determinado território”. Definidos esses conceitos básicos, Weber é conduzido a desdobrar a natureza dos elementos essenciais que constituem o Estado e assim chega ao conceito de autoridade e de legitimidade. Para que um Estado exista, diz Weber, é necessário que um conjunto de pessoas (toda a sua população) obedeça à autoridade alegada pelos detentores do poder no referido Estado. Por outro lado, para que os dominados obedeçam é necessário que os detentores do poder possuam uma autoridade reconhecida como legítima.

A autoridade pode ser distinguida segundo três tipos básicos: a racional-legal, a tradicional e a carismática. Esses três tipos de autoridade correspondem a três tipos de legitimidade: a racional, a puramente afetiva e a utilitarista. O tipo racional-legal tem como fundamento a dominação em virtude da crença na validade do estatuto legal e da competência funcional, baseada, por sua vez, em regras racionalmente criadas. A autoridade desse tipo mantém-se, assim, segundo uma ordem impessoal e universalista, e os limites de seus poderes são determinados pelas esferas de competência, defendidas pela própria ordem. Quando a autoridade racional-legal envolve um corpo administrativo organizado, toma a forma de estrutura burocrática, amplamente analisada por Weber.

A autoridade tradicional é imposta por procedimentos considerados legítimos porque sempre teria existido, e é aceita em nome de uma tradição reconhecida como válida. O exercício da autoridade nos Estados desse tipo é definido por um sistema de status, cujos poderes são determinados, em primeiro lugar, por prescrições concretas da ordem tradicional e, em segundo lugar, pela autoridade de outras pessoas que estão acima de um status particular no sistema hierárquico estabelecido. Os poderes são também determinados pela existência de uma esfera arbitrária de graça, aberta a critérios variados, como os de razão de Estado, justiça substantiva, considerações de utilidade e outros. Ponto importante é a inexistência de separação nítida entre a esfera da autoridade e a competência privada do indivíduo, fora de sua autoridade. Seu status é total, na medida em que seus vários papéis estão muito mais integrados do que no caso de um ofício no Estado racional-legal. Em relação ao tipo de autoridade tradicional, Weber apresenta uma subclassificação em termos do desenvolvimento e do papel do corpo administrativo: gerontocracia e patriarcalismo. Ambos são tipos em que nem um indivíduo, nem um grupo, segundo o caso, ocupam posição de autoridade independentemente do controle de um corpo administrativo, cujo status e cujas funções são tradicionalmente fixados. No tipo patrimonialista de autoridade, as prerrogativas pessoais do “chefe” são muito mais extensas e parte considerável da estrutura da autoridade tende a se emancipar do controle da tradição.

A dominação carismática é um tipo de apelo que se opõe às bases de legitimidade da ordem estabelecida e institucionalizada. O líder carismático, em certo sentido, é sempre revolucionário, na medida em que se coloca em oposição consciente a algum aspecto estabelecido da sociedade em que atua. Para que se estabeleça uma autoridade desse tipo, é necessário que o apelo do líder seja considerado legítimo por seus seguidores, os quais estabelecem com ele uma lealdade de tipo pessoal. Fenômeno excepcional, a dominação carismática não pode estabilizar-se sem sofrer profundas mudanças estruturais, tornando-se, de acordo com os padrões de sucessão que adotar e com a evolução do corpo administrativo ou racional-legal ou tradicional, em algumas de suas configurações básicas.



* O presente texto é a apresentação escrita por Maurício Tragtenberg ao volume da coleção Os Economistas, dedicado a Max Weber.