A CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO EM MAURÍCIO
TRAGTENBERG
Nildo Viana
Resumo: O presente
artigo aborda a concepção de educação de Maurício Tragtenberg. O objetivo foi
apresentar os principais aspectos de sua produção intelectual sobre o fenômeno educacional.
O caminho trilhado foi apresentar, brevemente, um pouco da vida e obra de
Maurício Tragtenberg, para depois analisar a sua crítica da educação
burocrática e, por fim, sua concepção de autoeducação do proletariado e
autogestão pedagógica. O resultado foi a percepção de que Maurício Tragtenberg
realiza uma crítica radical da educação burocrática, entendendo que ela
(incluindo a escola e a universidade) possui a função de reprodução das
relações de produção capitalistas, e se constitui através de uma rede
hierárquica de instituições. Ela efetiva isso através do controle burocrático
sobre professores e estudantes. A concepção de educação em Tragtenberg também
aponta para a necessidade de uma nova educação e ele aponta para isso sob duas
formas: a autoeducação do proletariado através de suas lutas e no interior das
instituições escolares, através da autogestão pedagógica e formas pedagógicas
similares.
Abstract:
This article addresses the concept of education by Maurício Tragtenberg. The
objective was to present the main aspects of his intellectual production on the
educational phenomenon. The path followed was to briefly present a little of
the life and work of Maurício Tragtenberg, to later analyze his critique of
bureaucratic education and, finally, his conception of self-education of the
proletariat and pedagogical self-management. The result was the perception that
Maurício Tragtenberg carries out a radical critique of bureaucratic education,
understanding that it (including the school and the university) has the
function of reproducing capitalist production relations, and is constituted
through a hierarchical network of institutions. It does this through
bureaucratic control over teachers and students. The concept of education in
Tragtenberg also points to the need for a new education and he points to this
in two ways: the self-education of the proletariat through its struggles and
within school institutions, through pedagogical self-management and similar
pedagogical forms.
Maurício
Tragtenberg apresentou uma grande contribuição para se pensar criticamente
vários temas fundamentais da sociologia e das ciências humanas em geral, bem
como temas políticos. Tragtenberg é um dos principais sociólogos brasileiros e
ainda merece maiores pesquisas e análises de sua produção intelectual. No
presente artigo, objetivamos analisar a sua contribuição específica para
análise do fenômeno educacional, um dos temas aos quais ele mais se dedicou.
Para realizar esse objetivo, iniciamos com uma apresentação geral do pensamento
de Tragtenberg, aspecto importante para compreender seu pensamento educacional,
e, após isso, apresentaremos os dois elementos fundamentais de sua análise da
educação, a questão da burocracia e a questão da autogestão, para, por último,
apresentar nossas reflexões sobre a sua concepção de educação.
O Pensamento de Maurício Tragtenberg
Maurício
Tragtenberg, como ele mesmo conta em sua autobiografia, nasceu no interior do
Rio Grande do Sul e logo se mudou para São Paulo, cidade na qual teve inúmeros
contatos com diversos segmentos sociais que o ajudaram a formar suas primeiras
reflexões políticas e sociais: imigrantes de outros países, operários,
intelectuais. Um leitor voraz que lhe proporcionou, com o passar do tempo e
acúmulo de leituras, uma erudição que será uma de suas marcas como intelectual.
Tragtenberg era um autodidata que tardiamente entra na universidade. Tal
entrada, inclusive, não se deu pelos meios convencionais da época, ou seja,
através de vestibular e sim através da apresentação de uma monografia, item do
regimento da Universidade de São Paulo, indicado por Antonio Cândido,
intelectual renomado, do qual ele lançou mão. Essa monografia, depois publicada
como livro, cujo título é: Planificação:
o desafio do século XX (1967), foi sua primeira contribuição
intelectual de uma longa série. Após terminar o curso, Tragtenberg começa a
carreira de professor e depois de muitas experiências, pois, como ele “especializou-se
em ganhar concursos” e, na UNESP, “perder contratos” (TRAGTENBERG, 1988),
acabou passando por algumas das grandes universidades brasileiras, tais como a
Fundação Getúlio Vargas (FGV), Universidade de Campinas (UNICAMP) e PUC-SP
(Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), no qual lecionou por décadas.
Para compreender a relação entre sua história de vida e sua produção
intelectual, no entanto, não basta tais referências, pois seria necessário
acrescentar sua passagem por partidos políticos e suas atividades
jornalísticas, entre outros aspectos de sua experiência de vida (SOUZA, 2017;
TRAGTENBERG, 1999).
No seu processo
histórico de vida, Tragtenberg fez inúmeras leituras e se tornou um erudito. A
sua erudição gira em torno de um eixo norteador que é a ideia de autogestão. A
concepção autogestionária de Maurício Tragtenberg, no entanto, não é obra da casualidade.
Sem dúvida, o processo histórico de vida de Tragtenberg foi fundamental para
que ele desenvolvesse sua concepção autogestionária, mas isso ocorre num
contexto histórico específico e que possibilita tal desenvolvimento. Nesse
caso, o Maio de 1968 é um acontecimento histórico decisivo para que a palavra
autogestão, e seu significado marxista, ganhasse espaço e se tornasse
referência intelectual. As lutas estudantis e operárias na França geraram a
retomada da ideia de autogestão num sentido revolucionário e marxista, tal como
se observa na obra de Guillerm e Bourdet (1976), bem como em outros autores e
diversos grupos políticos nesse país, e acaba se espalhando pelo mundo. Nesse
contexto, emerge o marxismo autogestionário, uma continuidade do marxismo de
Marx e do comunismo de conselhos, e que tem em Yvon Bourdet um dos seus mais
expressivos representantes (VIANA, 2020a).
Podemos dizer
que o marxismo autogestionário tem em Maurício Tragtenberg um representante no
Brasil. Sem dúvida, isso ocorre, num plano concreto, a partir das
peculiaridades e idiossincrasias do indivíduo Maurício Tragtenberg. E por isso
é necessário entender quais são as principais fontes de inspiração de
Tragtenberg. Podemos dizer que Tragtenberg teve como principais fontes de inspiração
o pensamento de Karl Marx, a sociologia de Max Weber, e, em menor grau, um
conjunto de pensadores anarquistas, representantes da análise institucional na
França (alguns sendo expressão, com certas ambiguidades, do marxismo
autogestionário),
entre outras.
Tragtenberg
extrai da obra de Marx as bases intelectuais do seu pensamento, desde elementos
teóricos, como a teoria da luta de classes e elementos da teoria do
capitalismo, até sua análise do movimento operário e da revolução proletária. A
crítica do capitalismo é algo fundamental, nesse aspecto, bem como a ideia de
que “a emancipação da classe operária é obra da própria classe operária” (MARX,
2014). Max Weber traz algumas contribuições ao pensamento de Tragtenberg, com
especial destaque para a sua sociologia da burocracia. Esse será um dos temas
mais discutidos por Tragtenberg e Weber, ao lado de outros sociólogos, como
Selznick (1978); Etzioni (1976), entre outros, serão importantes para sua
análise da burocracia. O marxismo que ele denomina “heterodoxo”
também tem forte influência no seu pensamento, desde Rosa Luxemburgo até
autores como Bordiga, chegando ao comunismo de conselhos, com destaque, entre
estes, para Pannekoek, Korsch, Rühle, Gorter. Os pensadores anarquistas também
terão um espaço no pensamento de Tragtenberg, desde os clássicos (Proudhon,
Bakunin, Kropotkin, Malatesta) até os posteriores, incluindo os ligados ao que
foi denominado “pedagogia libertária”, tal como Francisco Ferrer. Os
representantes da análise institucional, tais como Lobrot (1973); Lapassade (1989),
Lourau (1975), vão também contribuir com o pensamento de Tragtenberg, não
somente na discussão educacional e com a ideia de autogestão pedagógica, mas
também com as análises da burocracia, entre outras.
O pensamento de
Tragtenberg se orienta em torno de uma análise crítica do capitalismo e de seus
fundamentos, com destaque para a crítica da burocracia. O capitalismo, para
Tragtenberg, é uma sociedade que gera uma desumanização através da exploração
do proletariado (1967). O seu foco, no entanto, é no plano organizacional,
especialmente na questão da burocracia. Ele realizou diversos trabalhos de
análise e crítica da burocracia, em diversas instâncias da sociedade, com
destaque para suas obras Burocracia e
Ideologia (TRAGTENBERG, 1985) e Administração,
Poder e Ideologia (TRAGTENBERG, 1989a). Tragtenberg analisava a burocracia
no interior do processo de trabalho, desde as “harmonias administrativas” de
Saint-Simon e Mayo (TRAGTENBERG, 1985), passando pelo taylorismo, até chegar na
cogestão e formas contemporâneas de controle burocrático da atividade laboral
(TRAGTENBERG, 1989a). Ele também analisava o fenômeno burocrático em suas
diversas outras formas de manifestação, como em partidos e sindicatos
(TRAGTENBERG, 1989b), no capitalismo estatal (TRAGTENBERG, 1989b; 1988), nas
instituições escolares (TRAGTENBERG, 1990).
A crítica da
burocracia, no entanto, é acompanhada por um projeto alternativo: a autogestão.
O tema da autogestão aparece em diversas obras e em algumas ele aponta para uma
reflexão sobre o seu significado:
O problema do socialismo coloca-se ante
a existência real da luta de classes entre exploradores e explorados, entre
opressores e oprimidos. Socialismo implica auto-organização, associação,
autogestão operária. A autogestão não é um objetivo da sociedade capitalista,
seja na forma de capitalismo privado, seja na forma livre-concorrencial,
monopolista ou estatal. Ela significa que o proletariado e os assalariados em
geral gerem por si mesmos suas lutas, através das quais se conscientizem de que
podem administrar a produção e criar formas novas de organização do trabalho.
Em suma, que podem colocar em prática a ‘democracia operária’. O predomínio da
autogestão nos campos econômicos, social e político, manifesta-se sempre que os
trabalhadores aparecem como sujeitos revolucionários. São os períodos de
ascensão dos movimentos de massas que tomaram forma na Comuna de Paris de 1871,
na Revolução Russa de 1917, na Guerra Civil Espanhola de 1936, nas rebeliões de
1918 na Hungria e na criação do sindicato Solidariedade (1978) na Polônia
(TRAGTENBERG, 1989b, p. 10).
A questão da
autogestão emerge em várias de suas obras, seja como tema principal
(TRAGTENBERG, 1989b), seja envolvido em outras discussões (TRAGTENBERG, 1988;
1990). Não é, pois, exagerado dizer que “O sentido da vida e obra de
Tragtenberg foi, a nosso ver, a luta pela autogestão” (VIANA, 2008). Assim, o
fio condutor da obra de Tragtenberg é a autogestão e isso se reflete em todas
as suas obras.
Sem dúvida, a
educação foi um dos temas mais abordados por Tragtenberg e por isso vários
autores abordaram o seu tratamento da questão educacional (SILVA, 2008;
MARQUES, 2016; UHLE, 2001; GANDINI, 2001). O tema da “autogestão pedagógica” é
um outro momento no qual a ideia de autogestão aparece e que foi antecedida
pelo marxismo autogestionário francês no qual ele se inspira. Assim, a questão
da burocracia e da autogestão são os temas fundamentais que estão sempre presentes
no seu pensamento. Nesse sentido, Tragtenberg acompanha o desenvolvimento de
setores do marxismo, que passaram a se atentar para a questão da burocracia,
tal como o marxismo autogestionário francês e o autonomismo – que já havia
iniciado, em alguns casos, a discussão sobre essa questão numa perspectiva
marxista ou próxima do marxismo – e a questão da autogestão, que emerge com
força através de Guillerm e Bourdet, marxistas autogestionários franceses.
Educação, burocracia e reprodução
Depois dessa breve
síntese do pensamento de Maurício Tragtenberg, podemos passar para a análise de
sua concepção de educação. A abordagem da educação em Tragtenberg é
extremamente crítica, seguindo, nesse caso, a tradição de Marx, anarquistas,
marxistas autogestionários. A sua análise da educação tem três eixos
fundamentais: burocracia, reprodução e transformação. No presente item, vamos
nos ater aos dois primeiros eixos, a burocracia e a reprodução, que são
complementares.
Tragtenberg
aponta a ligação inseparável entre escola e capitalismo através da análise da
origem da educação formal:
O capitalismo, no seu processo de
desenvolvimento, separou da vida produtiva a criação e a transmissão da
cultura, sequestrou o corpo de conhecimentos, cuja origem é social, em instituições
privadas ou estatais: daí a emergência da instituição escolar como
diferenciada, com a pretensão de monopolizar a aprendizagem e a integração
social. O exercício e o controle desse monopólio acadêmico são entregues ao
Estado. Assim, o acesso à cultura se identifica com cumprimento de uma
legislação, obediência e normas, consumo de algo definido como “ensino” pelos
chamados “órgãos competentes” (TRAGTENBERG, 1980, p. 54).
Tragtenberg
aborda a questão da função da escola. A função da escola é a reprodução das
relações de produção capitalistas. Tragtenberg é explícito nesse sentido ao
tratar da escola como “aparelho ideológico”, termo retomado de Althusser, que
não é citado, que emerge num determinado estágio de desenvolvimento do modo de
produção capitalista. Ela, como todo aparelho ideológico, não cria ideologia,
mas a inculca.
E ele destaca o caso específico das universidades, pois “a universidade
reproduz o modo de produção capitalista dominante não apenas pela ideologia que
transmite, mas pelos servos que ela forma” (TRAGTENBERG, 1990, p. p. 13).
Assim, a função da escola é reproduzir o capitalismo. A ideia de
reprodução, que foi hegemônica desde os anos 1950 até o final dos anos 1970,
é retomada por Tragtenberg. Segundo ele:
A escola não cria a divisão em classes,
mas contribui para essa divisão e reprodução ampliada. A reprodução ampliada
das classes sociais comporta alguns aspectos: a) a reprodução ampliada dos
lugares que ocupam os agentes. Estes lugares designam a determinação da
estrutura sobre a divisão social do trabalho; b) a reprodução (distribuição)
dos próprios agentes entre estes lugares. Aí intervém ativamente na reprodução
dos lugares das classes sociais. Há uma reprodução das classes sociais e pela
oposição de classes, onde se move a reprodução ampliada da estrutura, inclusive
das relações de produção que preside o funcionamento dos aparelhos ideológicos;
[...] c) trata-se de uma distribuição primeira dos agentes, ligada à reprodução
primeira dos lugares das classes sociais: é ela que designa para este ou aquele
aparelho, para esta ou aquela série entre eles, e segundo as etapas e as fases
da formação social, o papel respectivo que eles assumem na distribuição dos
agentes (TRAGTENBERG, 1990, p. 44).
Tragtenberg vai
além dessa constatação e aborda a forma pela qual a escola realiza esse
processo de reprodução. A função de reprodução da escola se efetiva através da burocracia.
É a burocracia escolar que efetiva o controle da escola e desenvolve a
burocratização. A ação burocrática é hierárquica e vai da burocracia
ministerial para as demais, até chegar à burocracia escolar. No âmbito de uma
universidade ou de uma escola, o controle burocrático é dirigido em relação aos
intelectuais/professores e estudantes.
No caso do professor, ele é controlado
pelos mecanismos de nomeação na medida em que se exige dele um currículo
visível – prova de desempenho como professor, pesquisas realizadas, artigos ou
livros publicados –, porém o currículo invisível pode funcionar mais: uma
simples opinião de uma eminência parda que pertença ao Serviço de Informações e
Segurança que “assessora” reitorias, especialmente nas universidades federais e
na Universidade de São Paulo, pode vetar uma contratação proposta e aprovada
pelo departamento. É o chamado “currículo invisível” que pode condenar o
mestre. O controle do alunado se dá através do sistema de provas e exames, onde
é medida a conformidade do aluno aos ditames do Mestre, muito mais do que sua
produção e criatividade. A escola funciona, nesse sentido, mais como elemento
de domesticação do que como elemento de libertação e autoafirmação. A
burocracia universitária e ministerial oprime o mestre. Ele, por sua vez, tende
a reproduzir essa opressão sobre o aluno: é a dialética do senhor e escravo de
Hegel. O senhor oprime o escravo e ao mesmo tempo é escravizado pela máquina
que ajudou a construir (TRAGTENBERG, 1990, p. 148).
Assim,
retirando os aspectos mais datados da afirmação de Tragtenberg, ele destaca o
controle burocrático dos professores pela burocracia, em suas várias
instâncias, e dos estudantes. No caso dos professores, o controle ocorre via
currículo invisível e visível,
gerando o processo de atrelamento do professor para manter o emprego ou seguir
na carreira. O controle dos estudantes, por sua vez, ocorre através do processo
de sistemas de exames, gerando o atrelamento do estudante para conseguir
aprovação.
O sistema de
exames é, segundo Tragtenberg, parte da pedagogia burocrática. O sistema de
exames, segundo ele, é um “batismo burocrático do saber”, retomando afirmação
de Marx (1979). É através dele que a universidade viabiliza o poder sobre os
estudantes. É uma pedagogia repressiva que promove a avaliação rígida através
do sistema de notas, valoração da aula magistral (ou magna) e troca de
informações a respeito dos estudantes por parte dos professores. Porém, o
sistema de exames é uma parte desse processo: “o exame é a parte visível da
seleção; a invisível é a entrevista, que cumpre as mesmas funções de ‘exclusão’
que possui na empresa em relação ao futuro empregado. Informalmente,
docilmente, ela ‘exclui’ o candidato” (TRAGTENBERG, 1990, p. 13).
Os professores
estão submetidos ao processo da carreira – e é onde o currículo invisível ganha
força –, que, sobre pretexto de “qualificação docente e estímulo ao ensino”,
realiza um processo de disciplinamento da força de trabalho docente. Dessa
forma, as universidades (o que ocorre também nas escolas de outros níveis, como
fundamental e médio, mas sob outras formas) buscam formar força de trabalho
para servir ao modo de produção capitalista e assim se torna “aparelho
ideológico de inculcação”, gerando um “tipo de saber operacional e acrítico
(positivo)”, maneiras de sentir e agir de acordo com a racionalidade do poder, exigência
de disciplina, pontualidade e discrição do estudante, futuro burocrata ou
intelectual.
Tragtenberg
explica esse processo de burocratização escolar com o apoio de autores como
Marx, Weber, Selznick, Etzioni e Lobrot, entre outros. Ele trabalha com outros
termos que acabam ajudando a compreender outros aspectos da burocracia
educacional.
Uma questão da
análise que Tragtenberg faz da educação e que passa desapercebido por grande
parte dos seus intérpretes é a relação da burocracia com o saber. Geralmente se
reconhece o significado da inculcação que Tragtenberg atribui à escola, cuja
consciência tem sua origem em Marx (MARX; ENGELS, 1992). Pelo que ficou
evidente, até aqui, a burocracia exerce um duplo controle: dos professores e
dos estudantes. Por outro lado, esse controle é disciplinar e intelectual. O
controle dos professores ocorre via processos burocráticos e o currículo
invisível e o controle dos estudantes via sistemas de exames (e também
presença, tal como Tragtenberg coloca em outros momentos). O controle
intelectual é sobre os professores e destes sobre os estudantes, bem como o
controle disciplinar.
A questão é que
Tragtenberg relaciona o controle burocrático do saber com a produção e a
reprodução do saber. Ele recorda o dito de Bacon: “saber é poder”. As
instituições burocráticas, não apenas escolares, são responsáveis pela produção
de saber ideológico a serviço do poder. Segundo Tragtenberg,
a instrumentalização do saber é uma das
características dominantes na cultura do capitalismo moderno, e é produzida por
alguns “aparelhos ideológicos” como, por exemplo, a American Sociogical
Association (ASA), a American Political Science Association (APSA) e a American
Historical Association (AHA): “elas forneceram especialistas para os setores
empresariais e governamentais nos últimos 25 anos” (1990, p. 17).
O vínculo
dessas associações com determinados organismos e ao Estado é perceptível, tanto
é que, como diz Tragtenberg, elas “gozam de insenção de impostos graças ao
servilismo ante o Estado” e outras instituições. Assim, “cobertos pelo ideal de
‘neutralidade ante valores’ a maioria dos acadêmicos universitários vegetam no
conforto intelectual agasalhado pelas sinecuras burocráticas e legitimadas
ideologicamente pelo apoliticismo”, sendo esta “a ideologia dos que não tem ideologia”, que anda paralelamente
“à despreocupação sobre as implicações éticas e políticas do conhecimento
(TRAGTENBERG, 1990, p. 18). Desta forma, as universidades e outras instituições
educacionais estão articuladas com Fundações, Instituições, Agências, “Multinacionais”.
Assim como o Pentágono encarregava o MIT
(Massashussetts Instituto of Tecnology) da produção de bombas e armas
bacteriológicas, ocorre a mediação por firmas ou fundações. A automatização dos
campões de batalha futuros é elaborada nos campus; nesse esquema, a
Universidade da Califórnia se encarrega de atualizar o esboço de sistemas de
radar e armas nucleares, a Universidade de Chicago fornece a Pinochet, Milton
Friedman e sociólogos, a Universidade de Berkeley fornece aos indonésios
economistas como assessores, a Universidade da cidade de Nova Iorque aceitou
financiamento do Irã para um programa “cultural e acadêmico” com a finalidade
de espionar as atividades de estudantes iranianos nos EUA” (TRAGTENBERG, 1990).
Esse processo
aponta para determinações da produção intelectual nas universidades e outras
instituições. Esse é o processo de produção, mas existe também um processo
complementar, que é a reprodução desse saber a serviço do poder e aqui se torna
mais evidente a importância da burocracia universitária e escolar, pois elas são
as responsáveis por garantir o controle da produção e reprodução do saber nas
instituições escolares.
No âmbito da
reprodução, temos a relação entre professor/intelectual e estudante. O
professor, com a passagem da universidade pré-moderna (“mandarinal”) para a
universidade moderna (“tecnocrática”), deixa de ser “cão de guarda” para se
tornar “cão pastor”. A universidade passa a buscar a formação de “fornadas” de
“colarinhos brancos” para usinas, escritórios e dependências ministeriais. “É o
mito da assessoria, do posto público, que mobiliza o diplomado universitário”.
E isso vale até para os chamados “cursos críticos”, pois estes “desempenham a
função de um tranquilizante no meio universitário” (TRAGTENBERG, 1990, p. 12).
Nesse contexto,
Tragtenberg aponta para a ideia de “delinquência acadêmica”. Esta se opõe ao
dito kantiano: “ouse conhecer”. Afinal, “se os estudantes procuram conhecer os
espíritos audazes de nossa época, é fora da universidade que vão encontrá-los.
A bem da verdade, raramente a audácia caracterizou a profissão acadêmica”
(TRAGTENBERG, 1990, p. 13). Uma das doenças características da delinquência
acadêmica é a separação entre o fazer e o pensar.
Nesse sentido,
a educação serve para a reprodução do capitalismo, em todos os seus níveis.
Essa reprodução ocorre via burocratização, que tem suas fontes fora das
instituições escolas, nas burocracias das fundações, institutos, ministérios, e
acabam chegando às instituições escolares e que, nestas, exercem o controle
sobre professores e estudantes.
Educação, Autogestão e Emancipação
Esse quadro, no
entanto, parece muito pessimista. Além disso, Tragtenberg, para quem lê o
presente artigo apenas até aqui, poderia parecer um “reprodutivista”, ou
melhor, um “crítico-reprodutivista”.
Porém, não é esta a posição de Tragtenberg e isso fica claro quando ele discorda
explicitamente dos crítico-reprodutivistas:
A universidade não pode ser vista no
âmbito da ótica funcionalista de Althusser ou Bourdieu, como formadora de
ideias e pessoas a ‘serviço de’, mas como parte de uma rede complexa de
interações entre os distintos mecanismos da superestrutura (instituições e
ideologias, sistema político e realidade cultural) (TRAGTENBERG, 1990, p. 71).
Mas além dessa observação
crítica, Tragtenberg traz mais elementos que mostram sua distinção em relação
aos crítico-reprodutivistas. O ponto de partida dessa recusa da concepção
crítico-reprodutivista é a sua concepção marxista e posição revolucionária.
Essa recusa é, obviamente, uma recusa da educação burocrática e que serve ao
processo de reprodução. E essa recusa ocorre através de dois processos que vão
além da crítica de suas raízes, objetivos e interesses. Ou seja, além da recusa
explicitada na crítica da educação burocrática acima apresentada, Tragtenberg
aponta duas formas alternativas de educação em contraposição a ela. A primeira é
externa às instituições escolares e a segunda é interna a elas.
No plano
externo, Tragtenberg retoma a concepção de Marx sobre a autoeducação do
proletariado.
E Tragtenberg reconhece isso ao colocar que a opção à educação burocrática “é a
reafirmação dos princípios educacionais da Associação Internacional dos
Trabalhadores, na sua defesa de uma ‘educação integral e igualitária’ como
condição da autoemancipação dos trabalhadores e portanto de toda a sociedade”
(TRAGTENBERG, 1980, p. 57). A ideia de uma nova educação voltada para a
autoemancipação dos trabalhadores remete a uma nova forma para sua efetivação.
E é nesse contexto que Tragtenberg aponta algumas características desta nova
forma de educação:
Para tal, é necessário contrapor uma
educação crítica. Da mesma maneira que o movimento que produz e reproduz o
capital leva à produção e ampliação do trabalhador coletivo, na educação, o
mesmo movimento que produz a pedagogia burocrática, cria condições para
emergência de uma pedagogia antiburocrática fundada na:
Autogestão – supõe a gestão da
educação pelos envolvidos no processo educacional; isso significa a devolução
do processo de aprendizagem às comunidades onde o indivíduo se desenvolve
(bairro, local de trabalho).
Autonomia do indivíduo – o indivíduo não é
meio: é fim em si mesmo. No universo das coisas (mercadorias) tudo tem um
preço, porém, só o homem tem uma dignidade. Negação total de prêmios ou
punições.
Solidariedade – da mesma maneira que
o capitalismo cria a competição entre os trabalhadores, para superá-la eles
desenvolvem formas de solidariedade – sindicatos, por exemplo. Daí a educação
autogestionária fundar-se prioritariamente não na competição e sim na
solidariedade, ser uma educação crítica permanente das próprias formas
educativas; antiautoritária, preocupando-se em desenvolver as potencialidades
de cada um, eis que o indivíduo não vale tanto pelo que sabe quanto pelas
pré-condições que tenha para saber mais; seja globalizante, não restrita ao taylorismo intelectual.
Estes objetivos aliam-se à autogestão do
ensino, onde tenham poder decisório os envolvidos diretamente com o ensino
(alunos, professores, pais); daí a necessidade de as Associações de Bairro
participarem do controle desse Centros de Educação (TRAGTENBERG, 1980, p.
57-58).
Essa posição de
Tragtenberg é derivada de sua concepção autogestionária e que aponta para a
superação do capitalismo. Nesse contexto, a educação burocrática, reprodutora
do capitalismo, deve ser combatida e alternativas devem ser produzidas para que
ela uma nova forma de educação surja, tal como a autoeducação do proletariado.
As experiências nesse sentido revelam a possibilidade de concretização desse
processo, pois o saber operário foi “desapropriado” e ele necessita ser
reapropriado pela classe operária, tal como ocorreu em algumas experiências
históricas.
No plano
interno, ou seja, no interior das instituições escolares, Tragtenberg também
apresenta uma concepção alternativa, que é uma nova pedagogia. A constatação de
Tragtenberg de que a educação moderna, especialmente as universidades, é
organizada burocraticamente, cuja função é reproduzir as relações de produção
capitalistas, aponta para uma percepção crítica e, ao mesmo tempo, a
necessidade de uma alternativa. Tragtenberg observa a existência da contradição
no interior da organização burocrática escolar: “a mesma realidade que cria a
burocracia cria a oposição à mesma” (TRAGTENBERG, 1990, p. 58). Nesse contexto,
Tragtenberg aponta para a contribuição de Lobrot, que, segundo ele, é
fundamental:
Lobrot institui o conceito de uma
autogestão pedagógica partindo da ideia central
de que a aprendizagem significativa se dá por meio de um interesse real. A autogestão
pedagógica tem como centro não o programa, o professor, a instituição, mas o
aluno. Ela é orientada no atendimento às motivações do aluno, daí sua
disponibilidade à aprendizagem significativa. O mesmo se dá com o professor: de
“máquina programada” ele passa a gerir com o aluno o programa (TRAGTENBERG,
1990, p. 59).
Além dessa
breve referência a Lobrot, Tragtenberg não desenvolveu grandes reflexões ou
dedicou obras específicas sobre a autogestão pedagógica. Porém, é nítida a sua
proximidade com tal concepção, pelo menos no âmbito de projeto de educação, e
isso pode ser visto em seus textos sobre a pedagogia libertária de Ferrer e algumas
outras passagens. Em seu artigo sobre a Escola Racionalista ou Moderna,
demonstra concordância com o pensador espanhol. A pedagogia de Ferrer
“preocupava-se em desenvolver no aluno a análise crítica dos juízos, a
valorização do pensamento científico, educando integralmente o homem, nos
aspectos afetivo e racional”. Nesse contexto, a ideia de educação integral
(afetiva e racional) e pensamento crítico é uma das características da
“pedagogia libertária” de Ferrer. Ele trazia propostas como “coeducação de
ambos os sexos”, “coeducação das classes sociais”, “higiene escolar”, renovação
dos professores (inclusive uma “escola racionalista” para professores), fim de
“prêmios e castigos”, abolição dos exames, etc.
Desse conjunto
de propostas de Ferrer, algumas se encaixavam como luva nas concepções
pedagógicas de Tragtenberg, tal como o fim de prêmios e castigos e a abolição
do sistema de exames. Além dessa abordagem da pedagogia de Ferrer, Tragtenberg
também comentou outros autores que alguns julgam defender uma “pedagogia
socialista”, tal como Pistrak (TRAGTENBERG, 2011).
Porém, nesses casos, Tragtenberg reafirma sua posição de crítica da educação
burocrática (tal como a referência ao taylorismo por Pistrak) e a defesa dos
elementos contestadores (tal como a ideia de Pistrak de “auto-organização das
crianças”). A concepção pedagógica de Tragtenberg é, por conseguinte, centrada
na ideia de autogestão e cujo objetivo é a emancipação humana.
Em síntese,
Tragtenberg apresenta uma concepção de pedagogia alternativa ao que pode ser
denominado “pedagogia burocrática”, ligada à educação burocrática. Por
conseguinte, sua concepção de educação não apenas efetiva uma crítica da
educação e escola burocráticas, incluindo as universidades, como também aponta
para a necessidade de autoeducação do proletariado em suas próprias instâncias
de luta e para uma renovação pedagógica libertadora.
Considerações finais
A abordagem
sobre o pensamento educacional de Maurício Tragtenberg consistiu na busca em
resgatar sua produção e seu caráter crítico. Sem dúvida, Tragtenberg retomou e
apontou vários problemas da educação burocrática e não isolou este fenômeno,
colocando-o como parte de uma “rede complexa de instituições”, bem como apontou
para a necessidade de uma nova pedagogia.
Sem dúvida, a
sua concepção de educação é crítica e vinculada ao projeto autogestionário, o
que é seu ponto forte. Também é possível discordar de alguns elementos pontuais
de sua concepção, tal como a ideia de “autogestão pedagógica”. Não se trata de
recusar essa proposta pedagógica em si, pois enquanto projeto é o ideal, mas em
alguns pontos particulares e a própria ideia de autogestão pedagógica. A
autogestão pedagógica de forma generalizada pressupõe a autogestão social. Ela
é possível fora das instituições escolares, tal como no caso da autoformação,
ou autoeducação, do proletariado.
Porém, para
além desses detalhes, a obra de Maurício Tragtenberg sobre educação tem o
mérito de mostrar o funcionamento da educação burocrática, seus vínculos com o
poder e o capitalismo, numa ampla hierarquia burocrática, bem como os seus efeitos
sobre a produção intelectual, sobre os intelectuais (professores e
pesquisadores), sobre os estudantes. E deixar claro o pior efeito: a
delinquência acadêmica, o conformismo, a reprodução da ideologia e da
hegemonia, entre outros elementos. Da mesma forma, a crítica do sistema de
exames e do burocratismo escolar é outro elemento importante. A retomada da
ideia de Marx da autoeducação do proletariado e o apontamento para a
necessidade de uma nova pedagogia, também são outras contribuições importantes
de Tragtenberg. Nesse sentido, a concepção de educação de Maurício Tragtenberg
deve ser resgatada e reconhecida como uma das mais importantes na
contemporaneidade. Com sua obra, ele contribuiu para a consciência de que a
escola é um “cemitério de vivos” (Lima Barreto) e a consciência é o pressuposto
para a luta e a superação da situação que a gerou e é denunciada por ela.
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(a edição ficou sem a introdução por erro gráfico).