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quinta-feira, 22 de setembro de 2016

INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE MAX WEBER

INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE MAX WEBER*

Maurício Tragtenberg


Pondo-se de lado alguns trabalhos precursores, como os de Maquiavel (1469-1527) e Montesquieu (1689-1755), o estudo científico dos fatos humanos somente começou a se constituir em meados do século XIX. Nessa época, assistia-se ao triunfo dos métodos das ciências naturais, concretizadas nas radicais transformações da vida material do homem, operadas pela Revolução Industrial. Diante dessa comprovação inequívoca da fecundidade do caminho metodológico apontado por Galileu (1564-1642) e outros, alguns pensadores que procuravam conhecer cientificamente os fatos humanos passaram a abordá-los segundo as coordenadas das ciências naturais. Outros, ao contrário, afirmando a peculiaridade do fato humano e a consequente necessidade de uma metodologia própria. Essa metodologia deveria levar em consideração o fato de que o conhecimento dos fenômenos naturais é um conhecimento de algo externo ao próprio homem, enquanto nas ciências sociais o que se procura conhecer é a própria experiência humana. De acordo com a distinção entre experiência externa e experiência interna, poder-se-ia distinguir uma série de contrastes metodológicos entre os dois grupos de ciências. As ciências exatas partiriam da observação sensível e seriam experimentais, procurando obter dados mensuráveis e regularidades estatísticas que conduzissem à formulação de leis de caráter matemático.

As ciências humanas, ao contrário, dizendo respeito à própria experiência humana, seriam introspectivas, utilizando a intuição direta dos fatos, e procurariam atingir não generalidades de caráter matemático, mas descrições qualitativas de tipos e formas fundamentais da vida do espírito.

Os positivistas (como eram chamados os teóricos da identidade fundamental entre as ciências exatas e as ciências humanas) tinham suas origens sobretudo na tradição empirista inglesa que remonta a Francis Bacon (1561-1626) e encontrou expressão em David Hume (1711-1776), nos utilitaristas do século XIX e outros. Nessa linha metodológica de abordagem dos fatos humanos se colocariam Augusto Comte (1798-1857) e Émile Durkheim (1858-1917), este considerado por muitos o fundador da sociologia como disciplina científica. Os antipositivistas, adeptos da distinção entre ciências humanas e ciências naturais, foram sobretudo os alemães, vinculados ao idealismo dos filósofos da época do Romantismo, principalmente Hegel (1770-1831) e Schleiermacher (1768-1834). Os principais representantes dessa orientação foram os neokantianos Wilhelm Dilthey (1833-1911), Wilhelm Windelband (1848-1915) e Heinrich Rickert (1863-1936). Dilthey estabeleceu uma distinção que fez fortuna: entre explicação (erklären) e compreensão (verstehen). O modo explicativo seria característico das ciências naturais, que procuram o relacionamento causal entre os fenômenos. A compreensão seria o modo típico de proceder das ciências humanas, que não estudam fatos que possam ser explicados propriamente, mas visam aos processos permanentemente vivos da experiência humana e procuram extrair deles seu sentido (Sinn). Os sentidos (ou significados) são dados, segundo Dilthey, na própria experiência do investigador, e poderiam ser empaticamente apreendidos na experiência dos outros.

Dilthey (como Windelband e Rickert), contudo, foi sobretudo filósofo e historiador e não, propriamente, cientista social, no sentido que a expressão ganharia no século XX. Outros levaram o método da compreensão ao estudo de fatos humanos particulares, constituindo diversas disciplinas compreensivas. Na sociologia, a tarefa ficaria reservada a Max Weber.

Uma educação humanista apurada

Max Weber nasceu e teve sua formação intelectual no período em que as primeiras disputas sobre a metodologia das ciências sociais começavam a surgir na Europa, sobretudo em seu país, a Alemanha. Filho de uma família da alta classe média, Weber encontrou em sua casa uma atmosfera intelectualmente estimulante. Seu pai era um conhecido advogado e desde cedo orientou-o no sentido das humanidades. Weber recebeu excelente educação secundária em línguas, história e literatura clássica. Em 1882, começou os estudos superiores em Heidelberg, continuando-os em Göttingen e Berlim, em cujas universidades dedicou-se simultaneamente à economia, à história, à filosofia e ao direito. Concluído o curso, trabalhou na Universidade de Berlim, na qualidade de livre-docente, ao mesmo tempo que servia como assessor do governo. Em 1893, casou-se e, no ano seguinte, tornou-se professor de economia na Universidade de Freiburg, da qual se transferiu para a de Heidelberg, em 1896. Dois anos depois, sofreu sérias perturbações nervosas, que o levaram a deixar os trabalhos docentes, só voltando à atividade em 1903, na qualidade de coeditor do Arquivo de Ciências Sociais (Archiv für Sozialwissenschaft), publicação extremamente importante no desenvolvimento dos estudos sociológicos na Alemanha. A partir dessa época, Weber somente deu aulas particulares, salvo em algumas ocasiões, em que proferiu conferências nas universidades de Viena e Munique, nos anos que precederam sua morte, em 1920.

Compreensão e explicação

Dentro das coordenadas metodológicas que se opunham à assimilação das ciências sociais aos quadros teóricos das ciências naturais, Weber concebe o objeto da sociologia como, fundamentalmente, “a captação da relação de sentido” da ação humana. Em outras palavras, conhecer um fenômeno social seria extrair o conteúdo simbólico da ação ou ações que o configuram. Por ação, Weber entende “aquela cujo sentido pensado pelo sujeito ou sujeitos é referido ao comportamento dos outros, orientando-se por ele o seu comportamento”. Tal colocação do problema de como se abordar o fato significa que não é possível propriamente explicá-lo como resultado de um relacionamento de causas e efeitos (procedimento das ciências naturais), mas compreendê-lo como fato carregado de sentido, isto é, como algo que aponta para outros fatos e somente em função dos quais poderia ser conhecido em toda a sua amplitude.

O método compreensivo, defendido por Weber, consiste em entender o sentido que as ações de um indivíduo contêm e não apenas o aspecto exterior dessas mesmas ações. Se, por exemplo, uma pessoa dá a outra um pedaço de papel, esse fato, em si mesmo, é irrelevante para o cientista social. Somente quando se sabe que a primeira pessoa deu o papel para a outra como forma de saldar uma dívida (o pedaço de papel é um cheque) é que se está diante de um fato propriamente humano, ou seja, de uma ação carregada de sentido. O fato em questão não se esgota em si mesmo e aponta para todo um complexo de significações sociais, na medida em que as duas pessoas envolvidas atribuem ao pedaço de papel a função de servir como meio de troca ou pagamento; além disso, essa função é reconhecida por uma comunidade maior de pessoas.

Segundo Weber, a captação desses sentidos contidos nas ações humanas não poderia ser realizada por meio, exclusivamente, dos procedimentos metodológicos das ciências naturais, embora a rigorosa observação dos fatos (como nas ciências naturais) seja essencial para o cientista social. Contudo, Weber não pretende cavar um abismo entre os dois grupos de ciências. Segundo ele, a consideração de que os fenômenos obedecem a uma regularidade causal envolve referência a um mesmo esquema lógico de prova, tanto nas ciências naturais quanto nas humanas. Entretanto, se a lógica da explicação causal é idêntica, o mesmo não se poderia dizer dos tipos de leis gerais a serem formulados para cada um dos dois grupos de disciplinas. As leis sociais, para Weber, estabelecem relações causais em termos de regras de probabilidades, segundo as quais a determinados processos devem seguir-se, ou ocorrer simultaneamente, outros. Essas leis referem-se a construções de “comportamento com sentido” e servem para explicar processos particulares. Para que isso seja possível, Weber defende a utilização dos chamados “tipos ideais”, que representam o primeiro nível de generalização de conceitos abstratos e, correspondendo às exigências lógicas da prova, estão intimamente ligados à realidade concreta particular.

O legal e o típico

O conceito de tipo ideal corresponde, no pensamento weberiano, a um processo de conceituação que abstrai de fenômenos concretos o que existe de particular, constituindo assim um conceito individualizante ou, nas palavras do próprio Weber, um “conceito histórico-concreto”. A ênfase na caracterização sistemática dos padrões individuais concretos (característica das ciências humanas) opõe a conceituação típico-ideal à conceituação generalizadora, tal como esta é conhecida nas ciências naturais.

A conceituação generalizadora, como revela a própria expressão, retira do fenômeno concreto aquilo que ele tem de geral, isto é, as uniformidades e regularidades observadas em diferentes fenômenos constitutivos de uma mesma classe. A relação entre o conceito genérico e o fenômeno concreto é de natureza tal que permite classificar cada fenômeno particular de acordo com os traços gerais apresentados pelo mesmo, considerando acidental tudo o que não se enquadre dentro da generalidade. Além disso, a conceituação generalizadora considera o fenômeno particular um caso cujas características gerais podem ser deduzidas de uma lei.

A conceituação típico-ideal chega a resultados diferentes da conceituação generalizadora. O tipo ideal, segundo Weber, expõe como se desenvolveria uma forma particular de ação social se o fizesse racionalmente em direção a um fim e se fosse orientada de forma a atingir um e somente um fim. Assim, o tipo ideal não descreveria um curso concreto de ação, mas um desenvolvimento normativamente ideal, isto é, um curso de ação “objetivamente possível”. O tipo ideal é um conceito vazio de conteúdo real: ele depura as propriedades dos fenômenos reais desencarnando-os pela análise, para depois reconstruí-los. Quando se trata de tipos complexos (formados por várias propriedades), essa reconstrução assume a forma de síntese, que não recupera os fenômenos em sua real concreção, mas que os idealiza em uma articulação significativa de abstrações. Desse modo, se constitui uma “pauta de contrastação”, que permite situar os fenômenos reais em sua relatividade. Por conseguinte, o tipo ideal não constitui nem uma hipótese nem uma proposição e, assim, não pode ser falso nem verdadeiro, mas válido ou não-válido, de acordo com sua utilidade para a compreensão significativa dos acontecimentos estudados pelo investigador.

No que se refere à aplicação do tipo ideal no tratamento da realidade, ela se dá de dois modos. O primeiro é um processo de contrastação conceitual que permite simplesmente apreender os fatos segundo sua maior ou menor aproximação ao tipo ideal. O segundo consiste na formulação de hipóteses explicativas. Por exemplo: para a explicação de um pânico na bolsa de valores, seria possível, em primeiro lugar, supor como se desenvolveria o fenômeno na ausência de quaisquer sentimentos irracionais; somente depois se poderia introduzir tais sentimentos como fatores de perturbação. Da mesma forma se poderia proceder para a explicação de uma ação militar ou política. Primeiro se fixaria, hipoteticamente, como se teria desenvolvido a ação se todas as intenções dos participantes fossem conhecidas e se a escolha dos meios por parte dos mesmos tivesse sido orientada de maneira rigorosamente racional em relação a certo fim. Somente assim se poderia atribuir os desvios aos fatores irracionais.

Nos exemplos acima é patente a dicotomia estabelecida por Weber entre o racional e o irracional, ambos conceitos fundamentais de sua metodologia. Para Weber, uma ação é racional quando cumpre duas condições. Em primeiro lugar, uma ação é racional na medida em que é orientada para um objetivo claramente formulado, ou para um conjunto de valores, também claramente formulados e logicamente consistentes. Em segundo lugar, uma ação é racional quando os meios escolhidos para se atingir o objetivo são os mais adequados.

Uma vez de posse desses instrumentos analíticos, formulados para a explicação da realidade social concreta ou, mais exatamente, de uma porção dessa realidade, Weber elabora um sistema compreensivo de conceitos, estabelecendo uma terminologia precisa como tarefa preliminar para a análise das inter-relações entre os fenômenos sociais. De acordo com o vocabulário weberiano, são quatro os tipos de ação que cumpre distinguir claramente: ação racional em relação a fins, ação racional em relação a valores, ação afetiva e ação tradicional. Esta última, baseada no hábito, está na fronteira do que pode ser considerado ação e faz Weber chamar a atenção para o problema de fluidez dos limites, isto é, para a virtual impossibilidade de se encontrarem “ações puras”. Em outros termos, segundo Weber, muito raramente a ação social orienta-se exclusivamente conforme um ou outro dos quatro tipos. Do mesmo modo, essas formas de orientação não podem ser consideradas exaustivas. Seriam tipos puramente conceituais, construídos para fins de análise sociológica, jamais encontrando-se na realidade em toda a sua pureza; na maior parte dos casos, os quatro tipos de ação encontram-se misturados. Somente os resultados que com eles se obtenham na análise da realidade social podem dar a medida de sua conveniência. Para qualquer um desses tipos tanto seria possível encontrar fenômenos sociais que poderiam ser incluídos neles, quanto se poderia também deparar com fatos limítrofes entre um e outro tipo. Entretanto, observa Weber, essa fluidez só pode ser claramente percebida quando os próprios conceitos tipológicos não são fluidos e estabelecem fronteiras rígidas entre um e outro. Um conceito bem definido estabelece nitidamente propriedades cuja presença nos fenômenos sociais permite diferenciar um fenômeno de outro; estes, contudo, raramente podem ser classificados de forma rígida.

O sistema de tipos ideais

Na primeira parte de Economia e Sociedade, Max Weber expõe seu sistema de tipos ideais, entre os quais os de lei, democracia, capitalismo, feudalismo, sociedade, burocracia, patrimonialismo, sultanismo. Todos esses tipos ideais são apresentados pelo autor como conceitos definidos conforme critérios pessoais, isto é, trata-se de conceituações do que ele entende pelo termo empregado, de forma a que o leitor perceba claramente do que ele está falando. O importante nessa tipologia reside no meticuloso cuidado com que Weber articula suas definições e na maneira sistemática com que esses conceitos são relacionados uns aos outros. A partir dos conceitos mais gerais do comportamento social e das relações sociais, Weber formula novos conceitos mais específicos, pormenorizando cada vez mais as características concretas.

Sua abordagem em termos de tipos ideais coloca-se em oposição, por um lado, à explicação estrutural dos fenômenos, e, por outro, à perspectiva que vê os fenômenos como entidades qualitativamente diferentes. Para Weber, as singularidades históricas resultam de combinações específicas de fatores gerais que, se isolados, são quantificáveis, de tal modo que os mesmos elementos podem ser vistos numa série de outras combinações singulares. Tudo aquilo que se afirma de uma ação concreta, seus graus de adequação de sentido, sua explicação compreensiva e causal, seriam hipóteses suscetíveis de verificação. Para Weber, a interpretação causal correta de uma ação concreta significa que “o desenvolvimento externo e o motivo da ação foram conhecidos de modo certo e, ao mesmo tempo, compreendidos com sentido em sua relação”. Por outro lado, a interpretação causal correta de uma ação típica significa que o acontecimento considerado típico se oferece com adequação de sentido e pode ser comprovado como causalmente adequado, pelo menos em algum grau.

O capitalismo é protestante?

As soluções encontradas por Weber para os intrincados problemas metodológicos que ocuparam a atenção dos cientistas sociais do começo do século XX permitiram-lhe lançar novas luzes sobre vários problemas sociais e históricos, e fazer contribuições extremamente importantes para as ciências sociais. Particularmente relevantes nesse sentido foram seus estudos sobre a sociologia da religião, mais exatamente suas interpretações sobre as relações entre as ideias e atitudes religiosas, por um lado, e as atividades e organização econômica correspondentes, por outro.

Esses estudos de Weber, embora incompletos, foram publicados nos três volumes de sua Sociologia da Religião. A linha mestra dessa obra é constituída pelo exame dos aspectos mais importantes da ordem social e econômica do mundo ocidental, nas várias etapas de seu desenvolvimento histórico. Esse problema já se tinha colocado para outros pensadores anteriores a Weber, dentre os quais Karl Marx (1818-1883), cuja obra, além de seu caráter teórico, constituía elemento fundamental para a luta econômica e política dos partidos operários, por ele mesmo criados. Por essas razões, a pergunta que os sociólogos alemães se faziam era se o materialismo histórico formulado por Marx era ou não o verdadeiro, ao transformar o fator econômico no elemento determinante de todas as estruturas sociais e culturais, inclusive a religião. Inúmeros trabalhos foram escritos para resolver o problema, substituindo-se o fator econômico como dominante por outros fatores, tais como raça, clima, topografia, ideias filosóficas, poder político. Alguns autores, como Whilhelm Dilthey, Ernst Troeltsch (1865-1923) e Werner Sombart (1863-1941), já se tinham orientado no sentido de ressaltar a influência das ideias e das convicções éticas como fatores determinantes, e chegaram à conclusão de que o moderno capitalismo não poderia ter surgido sem uma mudança espiritual básica, como aquela que ocorreu nos fins da Idade Média. Contudo, somente com os trabalhos de Weber foi possível elaborar uma verdadeira teoria geral capaz de confrontar-se com a de Marx.

A primeira ideia que ocorreu a Weber na elaboração dessa teoria foi a de que, para conhecer corretamente a causa ou causas do surgimento do capitalismo, era necessário fazer um estudo comparativo entre as várias sociedades do mundo ocidental (único lugar em que o capitalismo, como um tipo ideal, tinha surgido) e as outras civilizações, principalmente as do Oriente, onde nada de semelhante ao capitalismo ocidental tinha aparecido. Depois de exaustivas análises nesse sentido, Weber foi conduzido à tese de que a explicação para o fato deveria ser encontrada na íntima vinculação do capitalismo com o protestantismo: “Qualquer observação da estatística ocupacional de um país de composição religiosa mista traz à luz, com notável frequência, um fenômeno que já tem provocado repetidas discussões na imprensa e literatura católicas e em congressos católicos na Alemanha: o fato de os líderes do mundo dos negócios e proprietários do capital, assim como os níveis mais altos de mão-de-obra qualificada, principalmente o pessoal técnico e comercialmente especializado das modernas empresas, serem preponderantemente protestantes”.

A partir dessa afirmação, Weber coloca uma série de hipóteses referentes a fatores que poderiam explicar o fato. Analisando detidamente esses fatores, Weber elimina-os, um a um, mediante exemplos históricos, e chega à conclusão final de que os protestantes, tanto como classe dirigente, quanto como classe dirigida, seja como maioria, seja como minoria, sempre teriam demonstrado tendência específica para o racionalismo econômico. A razão desse fato deveria, portanto, ser buscada no caráter intrínseco e permanente de suas crenças religiosas e não apenas em suas temporárias situações externas na história e na política.

Uma vez indicado o papel que as crenças religiosas teriam exercido na gênese do espírito capitalista, Weber propõe-se a investigar quais os elementos dessas crenças que atuaram no sentido indicado e procura definir o que entende por “espírito do capitalismo”. Este é entendido por Weber como constituído fundamentalmente por uma ética peculiar, que pode ser exemplificada muito nitidamente por trechos de discursos de Benjamin Franklin (1706-1790), um dos líderes da independência dos Estados Unidos. Benjamin Franklin, representante típico da mentalidade dos colonos americanos e do espírito pequeno-burguês, afirma em seus discursos que “ganhar dinheiro dentro da ordem econômica moderna é, enquanto isso for feito legalmente, o resultado e a expressão da virtude e da eficiência de uma vocação”. Segundo a interpretação dada por Weber a esse texto, Benjamin Franklin expressa um utilitarismo, mas um utilitarismo com forte conteúdo ético, na medida em que o aumento de capital é considerado um fim em si mesmo e, sobretudo, um dever do indivíduo. O aspecto mais interessante desse utilitarismo residiria no fato de que a ética de obtenção de mais e mais dinheiro é combinada com o estrito afastamento de todo gozo espontâneo da vida.

A questão seguinte colocada por Weber diz respeito aos fatores que teriam levado a transformar-se em vocação uma atividade que, anteriormente ao advento do capitalismo, era, na melhor das hipóteses, apenas tolerada. O conceito de vocação como valorização do cumprimento do dever dentro das profissões seculares Weber encontra expresso nos escritos de Martinho Lutero (1483-1546), a partir do qual esse conceito se tornou o dogma central de todos os ramos do protestantismo. Em Lutero, contudo, o conceito de vocação teria permanecido em sua forma tradicional, isto é, algo aceito como ordem divina à qual cada indivíduo deveria adaptar-se. Nesse caso, o resultado ético, segundo Weber, é inteiramente negativo, levando à submissão. O luteranismo, portanto, não poderia ter sido a razão explicativa do espírito do capitalismo.

Weber volta-se então para outras formas de protestantismo diversas do luteranismo, em especial para o calvinismo e outras seitas, cujo elemento básico era o profundo isolamento espiritual do indivíduo em relação a seu Deus, o que, na prática, significava a racionalização do mundo e a eliminação do pensamento mágico como meio de salvação. Segundo o calvinismo, somente uma vida guiada pela reflexão contínua poderia obter vitória sobre o estado natural, e foi essa racionalização que deu à fé reformada uma tendência ascética.

Com o objetivo de relacionar as ideias religiosas fundamentais do protestantismo com as máximas da vida econômica capitalista, Weber analisa alguns pontos fundamentais da ética calvinista, como a afirmação de que “o trabalho constitui, antes de mais nada, a própria finalidade da vida”. Outra ideia no mesmo sentido estaria contida na máxima dos puritanos, segundo a qual “a vida profissional do homem é que lhe dá uma prova de seu estado de graça para sua consciência, que se expressa no zelo e no método, fazendo com que ele consiga cumprir sua vocação”. Por meio desses exemplos, Weber mostra que o ascetismo secular do protestantismo “libertava psicologicamente a aquisição de bens da ética tradicional, rompendo os grilhões da ânsia de lucro, com o que não apenas a legalizou, como também a considerou diretamente desejada por Deus”. Em síntese, a tese de Weber afirma que a consideração do trabalho (entendido como vocação constante e sistemática) como o mais alto instrumento de ascese e o mais seguro meio de preservação da redenção da fé e do homem deve ter sido a mais poderosa alavanca da expressão dessa concepção de vida constituída pelo espírito do capitalismo.

É necessário, contudo, salientar que Weber em nenhum momento considera o espírito do capitalismo uma pura consequência da Reforma protestante. O sentido que norteia sua análise é antes uma proposta de investigar em que medida as influências religiosas participaram da moldagem qualitativa do espírito do capitalismo. Percorrendo o caminho inverso, Weber propõe-se também a compreender melhor o sentido do protestantismo, mediante o estudo dos aspectos fundamentais do sistema econômico capitalista. Tendo em vista a grande confusão existente no campo das influências entre as bases materiais, as formas de organização social e política e os conteúdos espirituais da Reforma, Weber salientou que essas influências só poderiam ser confirmadas por meio de exaustivas investigações dos pontos em que realmente teriam ocorrido correlações entre o movimento religioso e a ética vocacional. Com isso “se poderá avaliar” — diz o próprio Weber — “em que medida os fenômenos culturais contemporâneos se originam historicamente em motivos religiosos e em que medida podem ser relacionados com eles”.

Autoridade e legitimidade

A aplicação da metodologia compreensiva à análise dos fenômenos históricos e sociais, por parte de Weber, não se limitou às relações entre o protestantismo e o sistema capitalista. Inúmeros foram seus trabalhos de investigação empírica sobre assuntos econômicos e políticos. Entre os primeiros, salientam-se A Situação dos Trabalhadores Agrícolas no Elba e A Psicofisiologia do Trabalho Industrial. Entre os segundos, devem ser ressaltadas suas análises críticas da seleção burocrática dos líderes políticos na Alemanha dos Kaiser Guilherme I e II e da despolitização levada a cabo com a hegemonia dos burocratas. Para a teoria política em geral, contudo, foram mais importantes os conceitos e categorias interpretativas que formulou e que se tornaram clássicos nas ciências sociais.

Weber distingue no conceito de política duas acepções, uma geral e outra restrita. No sentido mais amplo, política é entendida por ele como “qualquer tipo de liderança independente em ação”. No sentido restrito, política seria liderança de um tipo de associação específica; em outras palavras, tratar-se-ia da liderança do Estado. Este, por sua vez, é defendido por Weber como “uma comunidade humana que pretende o monopólio do uso legítimo da força física dentro de determinado território”. Definidos esses conceitos básicos, Weber é conduzido a desdobrar a natureza dos elementos essenciais que constituem o Estado e assim chega ao conceito de autoridade e de legitimidade. Para que um Estado exista, diz Weber, é necessário que um conjunto de pessoas (toda a sua população) obedeça à autoridade alegada pelos detentores do poder no referido Estado. Por outro lado, para que os dominados obedeçam é necessário que os detentores do poder possuam uma autoridade reconhecida como legítima.

A autoridade pode ser distinguida segundo três tipos básicos: a racional-legal, a tradicional e a carismática. Esses três tipos de autoridade correspondem a três tipos de legitimidade: a racional, a puramente afetiva e a utilitarista. O tipo racional-legal tem como fundamento a dominação em virtude da crença na validade do estatuto legal e da competência funcional, baseada, por sua vez, em regras racionalmente criadas. A autoridade desse tipo mantém-se, assim, segundo uma ordem impessoal e universalista, e os limites de seus poderes são determinados pelas esferas de competência, defendidas pela própria ordem. Quando a autoridade racional-legal envolve um corpo administrativo organizado, toma a forma de estrutura burocrática, amplamente analisada por Weber.

A autoridade tradicional é imposta por procedimentos considerados legítimos porque sempre teria existido, e é aceita em nome de uma tradição reconhecida como válida. O exercício da autoridade nos Estados desse tipo é definido por um sistema de status, cujos poderes são determinados, em primeiro lugar, por prescrições concretas da ordem tradicional e, em segundo lugar, pela autoridade de outras pessoas que estão acima de um status particular no sistema hierárquico estabelecido. Os poderes são também determinados pela existência de uma esfera arbitrária de graça, aberta a critérios variados, como os de razão de Estado, justiça substantiva, considerações de utilidade e outros. Ponto importante é a inexistência de separação nítida entre a esfera da autoridade e a competência privada do indivíduo, fora de sua autoridade. Seu status é total, na medida em que seus vários papéis estão muito mais integrados do que no caso de um ofício no Estado racional-legal. Em relação ao tipo de autoridade tradicional, Weber apresenta uma subclassificação em termos do desenvolvimento e do papel do corpo administrativo: gerontocracia e patriarcalismo. Ambos são tipos em que nem um indivíduo, nem um grupo, segundo o caso, ocupam posição de autoridade independentemente do controle de um corpo administrativo, cujo status e cujas funções são tradicionalmente fixados. No tipo patrimonialista de autoridade, as prerrogativas pessoais do “chefe” são muito mais extensas e parte considerável da estrutura da autoridade tende a se emancipar do controle da tradição.

A dominação carismática é um tipo de apelo que se opõe às bases de legitimidade da ordem estabelecida e institucionalizada. O líder carismático, em certo sentido, é sempre revolucionário, na medida em que se coloca em oposição consciente a algum aspecto estabelecido da sociedade em que atua. Para que se estabeleça uma autoridade desse tipo, é necessário que o apelo do líder seja considerado legítimo por seus seguidores, os quais estabelecem com ele uma lealdade de tipo pessoal. Fenômeno excepcional, a dominação carismática não pode estabilizar-se sem sofrer profundas mudanças estruturais, tornando-se, de acordo com os padrões de sucessão que adotar e com a evolução do corpo administrativo ou racional-legal ou tradicional, em algumas de suas configurações básicas.



* O presente texto é a apresentação escrita por Maurício Tragtenberg ao volume da coleção Os Economistas, dedicado a Max Weber.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Relações de poder na escola

Relações de poder na escola


Maurício Tragtenberg
Professor da Escola de Administração de Empresas da FGV-SP


Professores, alunos, funcionários, diretores, orientadores. As relações entre todos estes personagens no espaço da escola reproduzem, em escala menor, a rede de relações de poder que existe na sociedade.

Isso não é novidade. O que interessa é conhecer como essas relações se processam e qual é o pano de fundo de idéias e conceitos que permitem que elas se realizem de fato. A nós interessa analisar a escola através de seu poder disciplinador. Como dizia o pensador francês Michel Foucault, a escola é o espaço onde o poder disciplinar produz saber.

Essa situação surgiu no século XIX com a instituição disciplinar que consiste na utilização de métodos que permitem um controle minucioso sobre o corpo do cidadão através dos exercícios de utilização do tempo, espaço, movimento, gestos e atitudes, com uma única finalidade: produzir corpos submissos, exercitados e dóceis. Tudo isso para impor uma relação de docilidade e utilidade.

Na escola, ser observado, olhado, contado detalhadamente é um meio de controle, de dominação, um método para documentar individualidades. A criação desse campo documentário permitiu a entrada do indivíduo no campo do saber e, logicamente, um novo tipo de poder emergiu sobre os corpos.

Os efeitos do poder se multiplicam na rede escolar devido à cada vez maior acumulação de novos conhecimentos adquiridos a partir da entrada dos indivíduos no campo do saber. Conhecer a alma, a individualidade, a consciência e o comportamento dos alunos é que tornou possível a existência da psicologia da criança e a psicopedagogia.

As áreas do saber se formam a partir de práticas políticas disciplinares, fundadas em vigilância. Isso significa manter o aluno sob um olhar permanente, registrar, contabilizar todas as observações e anotações sobre os alunos, através de boletins individuais de avaliação (ou uniformes-modelo, por exemplo), perceber aptidões, estabelecendo classificações rigorosas.
A prática de ensino, em sua essência, reduz-se à vigilância. Não é mais necessário o recurso à força para obrigar o aluno a ser aplicado, é essencial que o aluno, como o detento, saiba que é vigiado. Porém há um acréscimo: o aluno nunca deve saber que está sendo observado, mas deve ter a certeza de que poderá sempre sê-lo.

As normas pedagógicas têm o poder de marcar, salientar os desvios, reforçando a imagem de alunos tidos como "problemáticos", estigmatizados como "o negrão", o "índio", o "maloqueiro" ou o morador da "favela". A escola, ao dividir os alunos e o saber em séries, graus, salienta as diferenças, recompensando os que se sujeitam aos movimentos regulares impostos pelo sistema escolar. Os que não aceitam a passagem hierárquica de uma série a outra são punidos com a "retenção" ou a "exclusão".

Um aparelho para o controle de todos

A escola se constitui num centro de discriminação, reforçando tendências que existam no "mundo de fora". O modelo pedagógico instituído permite efetuar vigilância constante. As punições escolares não objetivam acabar ou "recuperar" os infratores, mas "marcá-los" com um estigma, diferenciando-os dos "normais", confiando-os a grupos restritos que personificam a desordem, a loucura ou o crime.

Dessa forma a escola se constitui num observatório político, um aparelho que permite o conhecimento e controle perpétuo de sua população através da burocracia escolar, do orientador educacional, do psicólogo educacional, do professor ou até dos próprios alunos.

É a estrutura escolar que legitima o poder de punir, que passa a ser visto como natural. Ela faz com que as pessoas aceitem tal situação. E dentro dessa estrutura que se relacionam os professores, os funcionários técnicos e administrativos e o diretor.

É necessário situar, ainda, que a presença obrigatória do "Diário de Classe", nas mãos do professor, marcandoausências e presenças nuns casos, atribuindo "meia falta" ao aluno que atrasou uns minutos ou saiu mais cedo da aula, é a técnica de controle pedagógico burocrático por excelência herdada do presídio. Esse professor é visto como encarregado de uma "missão educativa" por uns; como "tira" e "cão de guarda" da classe dominante por outros, "contestador e critico" por muitos.

Não há dúvida de que a escola, em qualquer sociedade, tende a renovar-se e ampliar seu âmbito de ação, reproduzir as condições de existência social formando pessoas aptas a ocuparem os lugares que a estrutura social oferece. Com a religião e o esporte, a educação pode se constituir num instrumento do poder e, nessa medida, o professor é o instrumento da reprodução das desigualdades sociais em nível escolar.

No seu processo de trabalho, o professor é submetido a uma situação idêntica à do proletário, na medida em que a classe dominante procura associar educação ao trabalho, acentuando a responsabilidade nacional do professor e de seu papel como guardião do sistema. Nesse processo, o professor contratado ou precário (sem contrato e sem estabilidade) — mais de 85 mil só no Estado de São Paulo — substitui o efetivo ou estável, conforme as determinações do mercado, colocando-o numa situação idêntica à do proletário.

O professor é submetido a uma hierarquia administrativa e pedagógica que o controla. Ele mesmo, quando demonstra qualidades excepcionais, é absorvido pela burocracia educacional para realizar a política do Estado, portanto, da classe dominante em matéria de educação. Fortalecem-se os célebres "órgãos" das Secretarias de Educação em detrimento do maior enfraquecimento da unidade escolar básica.

Na unidade escolar básica é o professor que julga o aluno mediante a nota, participa dos Conselhos de Classe onde o destino do aluno é julgado, define o Programa de Curso nos limites prescritos e prepara o sistema de provas ou exames. Para cumprir essa função ele é inspecionado, é pago por esse papel de instrumento de reprodução e exclusão.

E nas escolas particulares de classe alta, ao ultrapassar a entrada do colégio, o professor perde seus direitos em função das normas impostas e do papel a desempenhar. Mestres e alunos submetem-se a esse inconsciente coletivo transmitido por herança cultural: um "respeitável" professor não fala de sua vivência pessoal por temer ser considerado medíocre. O aluno, por sua vez, espera do professor certo tipo de comportamento, seu desprezo ou sua admiração.
A própria disposição das carteiras na sala de aula reproduz relações de poder: o estrado que o professor utilizaacima dos ouvintes, estes sentados em cadeiras linearmente definidas próximas a uma linha de montagem industrial, configura a relação "saber/poder" e "dominante/dominado".

O professor subordina-se às autoridades superiores, essa submissão leva-o a acentuar uma dominaçãocompensadora. Delegado dessa ordem hierárquica junto aos estudantes, ele é o símbolo vivo dessa dominação, o instrumento da submissão. Seu papel é impor a obediência. Na relação do professor com a classe, encontram-se dois adolescentes: o adolescente aluno, a quem ele deve educar, e o adolescente reprimido, que carrega consigo.

O que prova a prova?

O poder professoral manifesta-se através do sistema de provas ou exames, onde ele pretende avaliar o aluno. Na realidade, está selecionando, pois uma avaliação de uma classe pressupõe um contato diário demorado com ela, prática impossível no atual sistema de ensino.
disciplinação do aluno tem no sistema de exame um excelente instrumento, a pretexto de avaliar o sistema de exames. Assim, a avaliação deixa de ser um instrumento e torna-se um fim em si mesma. O fim, que deveria ser a produção e transmissão de conhecimentos, acaba sendo esquecido. O aluno submete-se aos exames e provas. O que prova a prova? Prova que o aluno sabe como fazê-la, não prova seu saber.

O fato é que, na relação professor/aluno, enfrentam-se dois tipos de saber, o saber do professor inacabado e a ignorância do aluno relativa. Não há saber absoluto nem ignorância absoluta. No fundo, os exames dissimulam,na escola, a eliminação dos pobres que se dá sem exame. Muitos deles não chegam a fazê-lo, são excluídos pelo aparelho escolar muito cedo, veja-se o nível de evasão escolar na 1º série do 1ºgrau e nas últimas séries do 1º e 2º? graus.
O exame permite a passagem de conhecimentos do professor ao aluno e a retirada de um saber do aluno destinado ao mestre. O exame está ligado a um certo tipo de formação de saber e a um certo tipo de exercício de poder. O exame permite também a formação de um sistema comparativo que dá lugar à descrição de grupos, caracterização de fatos coletivos, estimativa de desvios dos indivíduos entre si.

Qualquer escola se estrutura em função de uma quantidade de saber, medida em doses, administrada homeopaticamente. Os exames sancionam uma apropriação do conhecimento, um mau desempenho ocasional, um certo retardo que prova incapacidade do aluno em apropriar-se do saber. Em face de um saber imobilizado, como nas Tábuas da Lei, só há espaço para humildade mortificação. Na penitência religiosa só o trabalho salva, é redentor, portanto, o trabalho pedagógico só pode ser sadomasoquista.

Não é por acaso que existe relação entre a estrutura simbólica da religião com a escolar. Elas reforçam a estrutura simbólica pela qual se realiza a estrutura de classe. A mesma relação de indignidade existente entre o pecador e a religião é a existente entre os alunos e o saber. O aluno é visto como se tivesse uma essência inferior à do mestre, como o homem o é ante a figura de Deus.

O trabalho mortificante no plano pedagógico — a ansiedade em saber se foi aprovado ou reprovado no exame — é a via da redenção, a expiação da indignidade. É o único caminho para atingir o Templo do Saber, da Graça e da Riqueza.


Para não desencorajar os mais fracos de vontade surgem os métodos ativos em educação. A dinâmica de grupo aplicada à educação alienou-se quando colocou em primeiro plano o grupo em detrimento da formação. A utilização do pequeno grupo como técnica de formação deve ser vista como uma possibilidade entre outras. Tal técnica não questiona radicalmente a essência da pedagogia educacional. O fato é que os grupos acham-se diante de um monitor, aqueles caracterizam o não saber e este representa o saber.

Agente de reprodução social

Ao invés de colocar como tarefa pedagógica dar um curso e o aluno recebê-lo, por que não colocar em outros termos: em que medida o saber acumulado e formulado pelo professor tem chance de tornar-se o saber do aluno?

Vistos estáticamente a escola e o professor, ele aparece como guardião de um saber estratificado, como osacerdote das salvaguardas educacionais, como o gerente de sua distribuição, como o profeta da necessidade do trabalho e do mérito vinculado a um esforço redentor, finalmente, da vontade que tudo salva.

Porém, há o outro lado da moeda. O professor é agente de reprodução social e, pelo fato de sê-lo, também é agente da contestação, da crítica. O predomínio das funções de reprodução e de crítica professoral dependem mais do movimento social e sua dinâmica, que se dá na sociedade civil, fora dos muros escolares.

Em períodos de mudança social, o professor enquanto assalariado ou funcionário do Estado se organiza contra a deterioração de suas condições de trabalho. Nesse momento ele contesta o sistema. Porém, para contestar o sistema é necessário estar inserido nele numa função produtiva.

É o que se dá com o operário. Reproduzindo o capital, ponto terminal do trabalho acumulado, tem ele condições de contestar o capital mediante sua auto-organização e ações práticas. Desvinculado da produção pouco pode fazer. Greve de desempregados é coisa difícil.

Por tudo isso a escola é um espaço contraditório: nela o professor se insere como reprodutor e pressiona como questionador do sistema, quando reivindica. Essa é a ambigüidade da função professoral.

A possibilidade de desvincular saber de poder, no plano escolar, reside na criação de estruturas de organização horizontais onde professores, alunos e funcionários formem uma comunidade real. É um resultado que só pode provir de muitas lutas, de vitórias setoriais e derrotas, também. Mas, sem dúvida, a autogestão da escola pelos trabalhadores da educação — incluindo os alunos — é a condição de democratização escolar.

Sem escola democrática não há regime democrático, portanto a democratização da escola é fundamental e urgente, pois ela forma o homem, o futuro cidadão.
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Publicado em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451985000100021&lng=en&nrm=iso&gt 

domingo, 18 de setembro de 2016

FASCISMO PROLETÁRIO

FASCISMO PROLETÁRIO

 MAURÍCIO TRAGTENBERG


No dia 14/12/79 às 20h30, na porta do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, 30 elementos adeptos do jornal ‘A HORA DO POVO’, estranhos a categoria profissional, agrediram os membros da ‘Oposição Sindical Metalúrgica’ com cassetetes, correntes e barras de ferro, resultando ferimentos em Vito Giannoti e Raimundo de Oliveira, este, medicado no Pronto Socorro.
‘Só não conseguiram a eliminação física destes companheiros porque conseguiram refugiar-se num clube à rua Tabatinguera.’ (Carta Aberta aos Trabalhadores e à Opinião Pública em Geral da Oposição Metalúrgica). O que é de pasmar, é que os membros da Oposição Sindical refugiaram-se no Clube Militar lá existente (R. Tabantiguera) onde um coronel de revólver na mão impediu a invasão e agressão aos operários chamados: – Vocês tem que respeitar quem pensa diferente!
Tais acontecimentos suscitam reflexões. Os agressores são os mesmos que na última campanha salarial dos metalúrgicos investiram contra seus companheiros que deram ‘força total’ à campanha. Além do mais, são os que querem que os trabalhadores aceitem o famigerado ‘Pacto Social’ que beneficia exclusivamente a classe patronal, em suma, ‘são aqueles que batendo no peito se dizem marxistas-leninistas, mas no entanto, armam-se de correntes e cassetetes e vão a porta de nosso Sindicato colocar os operários ‘aventureiros’ na linha.’ (Carta Aberta, acima citada).
Isso mostra até que ponto o autoritarismo não se constitui em privilégio exclusivo do Estado e de seus agentes, porém, como um cancro infiltrou-se nos poros da sociedade civil, especialmente, no seio de grupúsculos que se jactam de dialéticos, porém, usam práticas fascistas como meios para chegar a seus pretensos fins: libertar a classe operária da exploração e da dominação. Ora, os fins a atingir são definidos pelos meios empregados, jamais se conseguirá desalienar uma classe batendo em seus membros com cassetetes, correntes, barras de ferro. Deus livre a classe operária de tais libertadores, ao contrário uma das condições de auto-libertação da classe consiste em livrar-se de tais ‘libertadores’ ou ‘representantes’.
Tais práticas fascistas mostram que, embora o fascismo como sistema político e ideologia tenha servido de escudo aos grandes monopólios na Itália e Alemanha, suas práticas se universalizaram no meio operário por meio de um seu irmão/inimigo: o estalinismo.
Estalinismo representou na história do movimento operário a formação de partidos que usam a linguagem de ‘esquerda’ e realizam uma ‘Prática-social’ conservadora, no melhor dos casos, próxima à direita tradicional.
Eis que a intolerância à divergência, o extermínio físico dos opositores no campo operário, a calúnia como arma política contra os ‘heréticos’ e ‘cismáticos’ se constituíram num arsenal político do estalinismo, especialmente vigoroso entre as décadas de 30/40.
Foi na Espanha, em plena guerra civil, que na área dominada pelo estalinismo deu-se uma das maiores repressões que a história conheceu à esquerda não autoritária. Assim, militantes da CNT (Confederação Nacional do Trabalho, de tendência socialista-libertária, membros do POUM (Partido Obreiro de Unificação Marxista), foram presos, torturados e mortos nas “tchekas” constituídas pelos adeptos de Carrillo. Enquanto lutavam contra Franco, esses militantes eram fuzilados pelas costas pela GPU (Polícia Secreta); a serviço do estalinismo. Resultado: foi mais, graças a essa repressão à esquerda não autoritária e menos o apoio de Hitler e Mussolini que Franco venceu a Guerra Civil, submergindo a Espanha em 50 anos de trevas.
A memória histórica é curta, especialmente no caso brasileiro.
Práticas autoritárias fascistas praticadas por minorias no movimento operário, se constituem no maior entrave ao crescimento da consciência social e política do operariado, socializam a insegurança e o medo; isso merece o repúdio da sociedade civil.
Eis que as divergências entre as várias facções no meio operário devem ser resolvidas mediante a discussão ampla e aberta dos problemas e não de sua ‘repressão’ mediante a violência de grupos organizados contra seus companheiros. Embora, a bem da verdade, seja importante notar que nenhuma das pessoas que vendiam a HORA DO POVO era da categoria (metalúrgicos), haja visto que todos ficaram na rua, enquanto a Assembleia transcorria normalmente no interior do Sindicato (Carta Aberta citada).
Isso mostra que os agressores eram figuras estranhas à categoria preocupados em aterrorizar aqueles que não rezavam por sua cartilha, que não aceitavam o celebérrimo ‘Pacto Social’, no melhor estilo de uma prática fascista, que, na falta de melhor qualificação, entendo como fascismo proletário, isto é, fascista de burocratas em cima de proletários.
É bem verdade, que tal prática fascista fora repudiada no Congresso da Anistia de Salvador, no I Congresso contra a Carestia em São Paulo, na Plenária dos Delegados de Área do Rio de Janeiro (que corresponde aos Comandos em São Paulo), pelos metalúrgicos de Guarulhos em Assembleia e pela Pastoral Operária. Porém, isso não basta.
Mais do que o repúdio a essa prática fascista dos adeptos da ‘HORA DO POVO’, Incube aos trabalhadores autênticos, organizados sob várias formas (Oposição Sindical, Associações de Bairro, Comunidade de Base) colocar em xeque esse fascismo proletário nascente, mediante a conscientização de que a imposição de qualquer ‘verdade’ pelo terror, no meio operário, está a serviço de seus piores inimigos, daqueles que exploram o trabalho operário na fábrica, como daqueles que a pretexto de se autoproclamarem sua ‘vanguarda consciente e organizada’, pretendem unicamente o poder de Estado, para se construir em nova classe exploradora.
Métodos repressivos utilizados contra a classe operária por qualquer facção – por mais ‘bem intencionada’ que esteja subjetivamente – objetivamente, contribuem para o obscurantismo, a intolerância e a prepotência pretensiosa ao ocuparem o espaço da discussão aberta, da crítica serena, condição da formação de uma consciência social e política.
É hora de relembrar a Espanha de 1936/39, onde êmulos espanhóis a ‘A HORA DO POVO’ esmagaram as correntes de esquerda não-autoritárias, permitindo a emergência e vitória do franquismo. Ainda sobra tempo para meditar nisso, porém, esse tempo é exíguo.
Texto originalmente publicado no jornal anarquista Inimigo do Rei, de março/abril de 1980.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O DILEMA DA ESTRELA: BRANCA OU VERMELHA?

O Dilema da Estrela: branca ou vermelha?

Maurício Tragtenberg

(Para ler em melhor resolução, clique na imagem).







Nesse texto, Maurício Tragtenber faz uma análise do PT - Partido dos Trabalhadores, em 1988, comentando documentos e abordando a concepção do partido, sua formação, suas tendências (Articulação, Em Tempo, O Trabalho), a força do sindicalismo e burocracia sindical no seu nascimento, a Igreja, as Comunidades Eclesiais de Base, os Intelectuais, os trotskistas, e sua estratégia política, de luta real (como alguns anarquistas fazem hoje) articulada com luta parlamentar. É uma análise crítica do PT, expondo seus limites, já expressos em 1988.

O PAPEL DO PARTIDO POLÍTICO


Maurício Tragtenberg

O que se viu até aqui dá uma ideia do papel da instituição partido político nos movimento sociais, mostrando a ambiguidade de sua atuação estímulo/controle desses movimentos e a criação do intermediário entre classe e Estado, o político profissional.

Teoricamente, os militantes de um partido devem conhecer as propostas programáticas das diferentes linhas internas, escolhendo a que está mais conforme a sua maneira de pensar. A cúpula de um partido representa os filiados.

Na prática, o líder partidário ordena e responde aos interesses do grupo dirigente minoritário e não aos da base. Como profissional do partido, o líder preocupa-se mais com seu trabalho do que com suas promessas. O fato de ser dirigente leva-o a afastar-se da vida quotidiana da maioria das pessoas, o que o torna “diferente”. Torna-se geralmente conservador, levando uma vida privada e desenvolvendo interesses da minoria dirigente. Esses líderes partidários, isolados nos escritórios, são facilmente corruptíveis pelos interesses das classes dominantes.

A maioria dos filiados a um partido não lhe conhece os programas, deixa-se levar por slogans ou palavras de ordem, promessas e carisma dos candidatos. Os programas e promessas são imprecisos e indefinidos, permitindo aos dirigentes ampla gama de manobras.

O compromisso dos partidos com a classe que detém o poder condiciona sua linha política. Pode acontecer até que um industrial apoiar um partido proletário, porém ele irá querer influir em sua linha política. Os militantes são convocados para atos públicos ou eleições.

Os partidos são dirigidos por castas, intelectuais e políticos profissionais. Não são democráticos, porque neles domina uma minoria dirigente com interesses específicos.

Numa democracia política, o programa de cada partido somente é conhecido por uma minoria; a grande maioria só conhece slogans, palavras de ordem e promessas ambíguas. Numa democracia parlamentar, a decisão é tomada por uma minoria, que, assim sendo, se corrompe e decide em seu próprio benefício.

A profunda incompatibilidade dos partidos da esquerda tradicional, sejam comunistas, socialistas ou intitulem-se partido dos trabalhadores, consiste em que o partido tende a ser o instrumento privilegiado de coordenação da revolução social. Fundamentalmente é um Estado em miniatura, com um aparelho e quadros cuja função é tomar o poder e não destruí-lo.

Consolidada a revolução, o partido assimila todas as formas técnicas e a mentalidade da burocracia. Seus membros aprendem a obedecer e a reverenciar um liderismo, ou “função dirigente do partido”, baseado em seculares costumes gerados pelo mando, autoridade, manipulação e hegemonia. Quando participa de eleições, o partido é obrigado a assumir a forma eleitoral. E a situação se complica quanto mais ele aumenta seu aparelho com uma rede de jornais, rádio, tevê, jornalistas, intelectuais oficiais e funcionários administrativos. Quanto mais cresce em número, maior é a distância entre a base e a direção. O líder converte-se em “personagem”.

No partido, fatores de status social e político e posições burocráticas alcançadas tornam-se mais importantes que a dedicação desinteressada à revolução social.

O partido é eficiente no moldar a sociedade à sua imagem hierárquica; cria a burocracia, a centralização e o Estado. Em vez de provocar o desaparecimento progressivo do Estado, o partido cria todas as condições para a existência daquele e de um partido para mantê-lo.

Se é certo dizer que nas revoluções burguesas “a fraseologia substitui o conteúdo”, no bolchevismo as formas substituem o conteúdo. Os sovietes substituem os trabalhadores e seus comitês de fábrica, o Partido substitui os sovietes, o Comitê Central substitui o Partido e o secretário-geral substitui o Comitê Central.

Karl Kautsky, teórico da II Internacional, defende o ponto de vista de que a consciência política do proletariado é introduzida de fora, negando um dos fundamentos da teoria marxista de que é a existência que determina a consciência social. Assim escreve Kautsky: “É totalmente falso que a consciência socialista seja o resultado necessário, direto, da luta de classes do proletariado. O socialismo e a luta de classes não são criados contemporaneamente e surgem de premissas diferentes. A consciência socialista nasce da ciência; o portador da ciência não é o operário e sim o intelectual burguês. Este é que comunica ao proletariado o socialismo científico” (K. Kautsky, Neue Zeit, 1901-02, v. XX, p. 79-80).

Essa é a visão que Lênin adota em sua obra Que Fazer?, onde define sua concepção de partido, achando ser o baixo nível cultural dos trabalhadores que os faz chegarem ao poder por intermédio de uma vanguarda. Lênin nega, assim, as possibilidades práticas do socialismo.

É por isso que, após a morte do líder, os leninistas, hipnotizados pela Revolução Russa, não viam que a mudança para o socialismo não começa simplesmente com a tomada do poder pelo PC. Segundo eles, somente quando o PC detém com exclusividade o poder é que os trabalhadores começam a exercer a “ditadura do proletariado” e o socialismo passa à ordem do dia. Com isso desvalorizam o esforço dos trabalhadores na área cultural, social ou econômica. A luta anterior da classe operária ; ria para organizar-se de nada conta, pois, segundo os leninistas, o proletariado é incapaz de chegar ao poder e estabelecer seu regime a não ser delegando poderes à sua “vanguarda consciente e organizada”, o PC.

As vanguardas, se existem, constituem meros grupos de propaganda ideológica. Sob Lênin, o PC lutava por ideias e princípios. Sob Stálin, as ideias transformaram-se em dogmas. Aí então o PC transformou-se num partido “predestinado” a realizar o socialismo, sendo visceralmente hostil a qualquer outra organização operária que se interpusesse entre ele e os trabalhadores. Pode pregar a unidade apenas para absorver outras organizações que o operariado crie no seu processo de luta, aproveitando delas os melhores militantes e liquidando-as implacavelmente.

A concepção, leninista de partido enquanto minoria organizada que deva dirigir uma maioria informe, o proletariado, leva o trabalhador a regredir em seu nível de consciência social e política. O trabalhador é deseducado pelo oportunismo do partido, pelo seu desprezo as ideias, e submetido a um processo que o torna incapaz de uma ação autônoma e coletiva. A classe operária perde a confiança na sua própria capacidade de luta, organização e compreensão do processo social, transferindo-a ao partido.

Essa sacralização do partido caminha paralela à ideologia da nulidade operária. Um partido, por mais comunista que se proclame, sem um alto grau de organização do trabalhador em sindicatos, cooperativas, não passará de um instrumento para conseguir seus próprios objetivos imediatos, nem sempre coincidentes com o que pretendem os operários.

Para o trabalhador, o socialismo pode ser o coroamento de suas lutas quotidianas contra o capital; para o PC, imbuído de uma ideologia e de um, messianismo próprio, o socialismo é sua conquista do poder, independente do grau de amadurecimento do proletariado. O caráter proletário para o PC é dado por uma teoria e não pela realidade social.

A destruição da Oposição Operária na URSS, a repressão à Rebelião de Kronstadt e à revolução camponesa de Makhno e a substituição da direção coletiva da fábrica pela direção unipessoal mostram como a Revolução Russa foi destruída por forças internas e não pela invasão estrangeira.

É importante notar - como faz J. Bernardo, em carta de 13-6-82 que “as formas de organização do movimento operário são seu próprio conteúdo. É porque não veem essas formas enquanto conteúdo o caráter imediatamente ideológico que elas tomam (auto-organização, autogestão das lutas) - a perspectiva comunista que está implícita e inelutavelmente contida nessas formas - refiro-me às formas de luta autônoma - é porque não veem nada disso que esses teóricos (leninistas) são cegos quanto às lições a tirar do movimento operário”.

No sistema capitalista, a fábrica adota o despotismo administrativo e, como reação, desenvolvem-se nela relações sociais propícias ao comunismo. E acontece que essas relações extravasam os limites fabris. Assim, a internacionalização do capitalismo permite emergirem formas de luta proletárias que, no seu processo de, desenvolvimento, criam as condições mínimas ao comunismo. E o proletariado, definindo-se como classe internacional, na Polônia, Brasil, Portugal ou Bolívia, tende a desenvolver formas idênticas de luta.

De qualquer forma, as cisões no Leste Europeu - o caminho independente da Iugoslávia, as veleidades de independência da Romênia, o isolamento da Albânia e as revoluções da Hungria, Tchecoslováquia e da Polônia - deixam bem claro a desintegração do bloco comunista tradicional.

No mundo capitalista, a revolução na Nicarágua (1979), a Revolução Cubana, a impossibilidade de os EUA terminarem pela força a contestação em El Salvador e a crise do Oriente Médio mostram que tudo caminha no mesmo sentido, embora relações bilaterais (URSS-Argentina ou EUA-Hungria) mostrem níveis de integração do capitalismo mundial nesse processo contraditório.

O movimento operário no seu processo de luta tende a criar organizações igualitárias, horizontais, destruindo hierarquias estabelecidas pelo Estado, o técnico como intermediário, na empresa, entre o trabalhador e a administração e o político como o intermediário entre a classe o conjunto da sociedade. É o que Rosa Luxemburgo definia: A tendência dominante que caracteriza a marcha do movimento socialista na atualidade e no futuro é a abolição dos dirigentes e da massa dirigida” (Rosa Luxemburgo, Marxisme contre dictature, Paris, Spartacus, p. 36-7).

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Capítulo de:
TRAGTENBERG, Maurício. Reflexões Sobre o Socialismo. Rio de Janeiro: Moderna, 1988.


O PAPEL DO SINDICATO

 O PAPEL DO SINDICATO 

Maurício Tragtenberg

Quer sob o capitalismo privado, quer sob o capitalismo de Estado, o sindicato exerce a mesma função do partido: contribuir para a reprodução do sistema, pois a luta por reivindicações salariais acaba beneficiando o setor II da economia (bens de consumo). 

É um sindicato atrelado ao Estado cuja preocupação consiste em controlar a massa operária, falar e negociar às suas costas. 

Pode ser, em outra via, um sindicato imbricado no sistema capitalista sob a forma de capitalismo sindical, embora desatrelado do Estado. É o caso de Israel, com a sua Central Operária Histadruth; da Alemanha, dominada pela DGB; da Escandinávia, cujo sindicato possui legitimamente um parque industrial e explora a mais-valia dos trabalhadores. A Central Sindical de Israel possui grandes empresas de construção civil, e o segundo maior banco do país também é de sua propriedade. A DGB possui empresas, bancos, redes de lojas e opera no mercado financeiro. 

Por meio do capitalismo sindical, o capitalismo moderno se redimensiona: o capitalista cuida das máquinas, o sindicato cuida da disciplinação da mão-de-obra. Noventa por cento das entidades, grupos ou partidos que trazem o nome “operário” têm a finalidade de controlar o operariado. 

Porém, como a luta de classes existe, após ser sufocada ela renasce e assume a forma de autoorganização, reivindicando autonomia ante o capital, privado ou estatal; criando organizações horizontais, como os comitês de luta da Fiat-Diesel do Rio de Janeiro; opondo-se à burocratização das empresas socialistas, como fizeram a Oposição Operária de Kollontai em 1920, a Rebelião de Kronstadt e as rebeliões húngara, polonesa e tcheca; opondo conselhos operários livremente eleitos à ditadura do partido único, como na Polônia, onde o Solidariedade transformou o sindicato estatal oficial em “paralelo”, esvaziando-o totalmente. 

Este é o pêndulo da luta social através dos tempos e um dos dilemas fundamentais do socialismo: Autogestão social ou estatização da economia? Auto-organização mediante a formação de conselhos operários ou hegemonia de uma vanguarda? Democracia direta ou democracia parlamentar com ou sem partido único? Eis as questões postas na mesa. 

A resposta deverá ser dada pelo desenrolar do processo social, pelas relações de classe das forças em luta, pela capacidade de reação do proletariado a manipulações social-democratas ou suas irmãs eurocomunistas.
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Capítulo de:
TRAGTENBERG, Maurício. Reflexões Sobre o Socialismo. Rio de Janeiro: Moderna, 1988.

A Revolução Russa Segundo Maurício Tragtenberg

A Revolução Russa Segundo Maurício Tragtenberg

Nildo Viana*

A Revolução Russa foi um dos acontecimentos históricos mais importantes do século 20. Ela foi palco de calorosos debates, análises, disputas, e acabou sendo fonte inspiradora de lutas e ações políticas posteriores. A versão dominante da Revolução Russa foi amplamente divulgada, sendo que a versão dos vencidos foi relegada à marginalidade. No Brasil não foi diferente. Aqueles que discutiram a Revolução Russa reproduziram a versão oficial da historiografia e deixaram de lado as ricas experiências proletárias e camponesas, o significado histórico fundamental e revolucionário dos sovietes (conselhos operários), a esquerda dissidente e suas críticas ao regime bolchevique estabelecido. Uma rara exceção existiu no seio da intelectualidade brasileira e foi representada por Maurício Tragtenberg, que fez reemergir a perspectiva do proletariado no que se refere ao marxismo e às lutas heróicas do proletariado. Assim, as duas reedições da obra de Tragtenberg, A Revolução Russa[1], é antes de tudo uma necessidade, mas também é uma brecha para que a verdade sobre este acontecimento histórico reapareça.

Compreender a obra significa compreender o autor. Da mesma forma, compreender o autor significa compreender a obra. Maurício Tragtenberg foi um dos mais importantes sociólogos brasileiros e exerceu influência sobre inúmeros intelectuais, amigos, alunos. O sentido da vida e obra de Tragtenberg foi, a nosso ver, a luta pela autogestão, e não, como alguns podem pensar, “uma vida para as ciências humanas”. Tragtenberg nasceu em Erexim, Rio Grande do Sul, no dia 4 de novembro de 1929. Morou algum tempo em Porto Alegre e posteriormente mudou para São Paulo. Freqüentou o Centro de Cultura Democrático, movimentos de jovens judeus, Partido Comunista Brasileiro, Biblioteca Municipal de São Paulo, família Abramo, Partido Socialista Brasileiro e Centro de Cultura Social, de orientação anarquista. Desde os 10 anos lia Rosa Luxemburgo, Trotsky e vários outros, pois tinha acesso a uma ampla bibliografia, cuja origem era o acervo de familiares, bibliotecas, partidos, etc. Manteve contato com intelectuais como Antônio Cândido, Azis Simão, entre vários outros. Aliás, foi Antônio Cândido que lhe informa da possibilidade para entrar na USP através da proposta de uma monografia, desde que essa fosse aceita. A monografia, depois publicada como livro (Planificação: Desafio do Século 20), foi aprovada e assim ele passou a fazer parte da esfera acadêmica. Na esfera acadêmica, produziu várias obras, com destaque para sua tese Burocracia e Ideologia, além de diversos livros, bem como prefácios de outras obras, organização de livros e artigos para revistas e jornais. Chegou a ser colunista do jornal Notícias Populares, visando atingir um público composto por trabalhadores.

Alguns temas foram recorrentes e fundamentais em sua produção, tais como a questão da burocracia, a obra de pensadores como Marx, Weber e Bakunin, a autogestão social, as lutas operárias, a autonomia e auto-organização do proletariado e campesinato, autores “marginais” ou “malditos” como Rosa Luxemburgo, Makhaïsky, Korsch, Bordiga, Pannekoek, Gorter, etc.

A preocupação de Maurício Tragtenberg com a burocracia se manifesta em sua primeira obra, a monografia-livro Planificação: Desafio do Século 20, no qual aborda a questão da burocracia, iniciando com uma discussão sobre alienação, natureza humana e classes sociais, para encerrar com uma análise do bolchevismo, da burocratização da Rússia e do capitalismo de Estado. Ele encerra apresentando a alienação como sendo provocada pela divisão social do trabalho e que a reintegração do homem na humanidade e sua essência só pode ocorrer através do socialismo, que realizaria a emancipação humana. Sua obra Burocracia e Ideologia, oferece uma análise da formação e características das teorias gerais da administração, abarcando um amplo espectro histórico (do modo de produção asiático ao capitalismo) e ideológico (de Saint-Simon a Max Weber). As teorias gerais da administração são consideradas por ele como ideologias, formas de falsa consciência, representando os interesses das classes dominantes, que são operacionais no nível técnico e que mudam de acordo com a mudança nos processos econômicos e sociais. O tema da burocracia é retomado em Administração, Poder e Ideologia, que aborda o problema das grandes corporações e questões como a co-gestão, o participacionismo e outras formas que as grandes empresas utilizam para enquadrar e integrar os trabalhadores. A crítica da burocracia continua em Sobre Educação, Política e Sindicalismo, mas desta vez focalizando a burocracia escolar e universitária.

Outro tema fundamental na obra de Tragtenberg é o da educação libertária e da autogestão das lutas operárias. A educação está presa nas malhas da burocracia, mas é um processo contraditório, havendo brechas e possibilidades, lutas que são definidoras da produção, apropriação e expropriação do saber. Daí a presença em sua obra do tema da “pedagogia libertária” ou “autogestão pedagógica”. Por isso ele analisava os educadores libertários (Francisco Ferrer), e as experiências históricas (a autogestão pedagógica na Espanha). Isto estaria ligado ao processo de constituição de uma nova sociedade e, retomando Marx, entendia que tal processo seria resultado da luta da classe operária, de sua auto-educação e auto-organização. Segundo Tragtenberg, em Reflexões sobre o Socialismo, apesar da tendência à burocratização, a classe trabalhadora nega este processo criando organizações horizontais, igualitárias, novas relações sociais. A chave para entender a formação de uma nova sociedade está no desenvolvimento destas formas de auto-organização do proletariado. No seu processo de luta, de auto-organização e associação (comissões de fábrica, comitês de greve, conselhos operários), se encontra o embrião da futura sociedade autogerida. É aí que se encontra a razão de sua crítica aos partidos e sindicatos, bem como sua oposição ao capitalismo de Estado (“socialismo real”).

É neste contexto da produção teórica de Tragtenberg que podemos compreender melhor o seu livro sobre a Revolução Russa. Tragtenberg analisa a pré-história da Revolução, analisando a Rússia Imperial, a evolução do czarismo, as rebeliões camponesas, a igreja. Depois analisa a sociedade russa pré-revolucionária, no qual apresenta um panorama das classes sociais existentes neste período, os debates entre as tendências políticas, e a Revolução de 1905 e o papel dos partidos políticos. O processo da Revolução Russa é a parte seguinte, na qual aborda a revolução camponesa na Ucrânia, a instauração do regime bolchevique, a revolta de Kronstadt, a questão sindical e a Oposição Operária de Alexandra Kollontai, os Sovietes e seu esvaziamento pelos bolcheviques, e diversas questões postas no processo de luta de classes na Rússia deste período (ditadura do proletariado, questão nacional e colonial, assembléia constituinte).  

É neste contexto que ele apresenta, na parte final, a discussão sobre o partido político. Ele questiona o centralismo democrático e aponta suas conseqüências. Segundo Tragtenberg, “as revoluções que procuram mudar as relações de propriedade e não somente as pessoas que governam, instaurando um novo modo de produção, não são feitas por partidos, grupos ou quadros, mas resultam das contradições sociais que mobilizam amplos setores da sociedade”. O papel do Partido Bolchevique foi promover uma contra-revolução. O partido passa a ser um estado burguês em miniatura e defender o liderismo e centralismo. O partido reproduz a mentalidade burocrática e cria ideologias para se justificar e legitimar, isto, tal como a ideologia leninista da nulidade operária. O partido assume o poder estatal e toma conta da sociedade, realizando uma aliança entre a burguesia de Estado e a tecnocracia, o que promove a implantação do capitalismo de Estado. O substitucionismo apontado por Trotsky em seu período de juventude e em polêmica com Lênin (O partido substitui a classe; o comitê central substitui o partido; um ditador único substitui o comitê central) se realiza na realidade concreta. O bolchevismo já era ideologicamente o que se tornou praticamente a nível nacional, ou seja, foi o promotor do capitalismo estatal. As ideologias e ações do Partido Bolchevique confirmam a tese do substitucionismo: as teses defendidas por Lênin (gestão individual das empresas) e Trotsky (a militarização dos sindicatos) e a prática efetuada por ambos (massacre na Ucrânia e em Kronstadt) são manifestações concretas de algo que já estava em germe, em alguns casos, ou já estavam desenvolvidas, mas sem aplicação prática.

Assim, Tragtenberg faz uma revisita ao processo histórico da revolução russa partindo da perspectiva do proletariado. Neste sentido, esta obra de Tragtenberg (mas não só esta) mostra como a perspectiva do proletariado está presente na análise histórica e na reconstituição histórica. Trata-se de uma questão discutida na historiografia, mas sob a forma relativista e geralmente com tendência individualista. A reconstituição de um fenômeno histórico é realizada tendo por base as informações existentes sobre ele, as ferramentas intelectuais e analíticas de quem a faz, os valores, sentimentos, concepções e interesses do mesmo, que estão na base da escolha e formação destas ferramentas intelectuais.

A concepção cientificista segundo a qual bastaria ter um instrumental metodológico e/ou uma abordagem supostamente teórico-sistemática para dar conta da reconstituição do fenômeno histórico é ilusória e nada tem de inocente. Esta concepção revela uma perspectiva de classe, que está na sua base e também dos “métodos” e “teorias” apresentados como a solução mágica para chegar ao “conhecimento científico”, sendo, na verdade, construções ideológicas, metafísicas e reificadas. O seu oposto, o relativismo, já abandona a pretensão da verdade e se refugia em outras ideologias metafísicas e imprecisas, fazendo do descompromisso ou do compromisso duvidoso a sua máxima e seu guia. Assim consegue disfarçar a perspectiva de classe que está na sua base.

Na obra de Tragtenberg, nenhuma destas alternativas se encontra presente. A história da Revolução Russa é apresentada em seu processo social de constituição, perpassado pela luta de classes, pelos desdobramentos destas lutas, pelas formas organizativas, intelectuais e ideológicas que assume, num processo analítico que não apenas mostra as forças em luta, mas suas debilidades e, principalmente, como o discurso dominante, burocrático-bolchevista, é ideológico, uma falsa consciência sistemática da realidade, e, ao mesmo tempo, eficaz, mobilizador e legitimador da exploração do proletariado pela burocracia metamorfoseada em burguesia de Estado.

Isto é perceptível, por exemplo, na análise que ele faz do economista Preobrajenski. Este ideólogo bolchevique irá escrever a obra “A Nova Ciência da Economia”, na qual discute as leis gerais do capitalismo e do socialismo. Ele produz a tese da “acumulação socialista primitiva”, na qual existiria, tal como na época de surgimento do capitalismo existiu a “acumulação primitiva de capital”, a pilhagem. Tragtenberg coloca que, para Preobrajenski, “a acumulação socialista aparece de duas formas: pela redução do salário dos operários e funcionários do Estado ou à custa das rendas dos pequeno-burgueses e capitalistas. Pelo controle dos impostos, o setor socialista poderá apropriar-se da mais-valia do setor privado”.

Isto tem como conseqüência o reforço do setor socialista da economia e do aparato partidário. Os setores que seriam pilhados seriam, fundamentalmente, os do setor privado, que, naquele momento, eram os camponeses e outros setores (dependendo do momento histórico). A tese, já presente em Engels e Lênin, da “segunda luta”, agora entre proletários e camponeses, é retomada e serve como justificativa e legitimação da superexploração do campesinato.

A questão da perspectiva de classe aparece neste exato momento. Em primeiro lugar, o paralelo entre revolução burguesa e proletária expressa uma perspectiva de classe por parte de Preobrajenski. Suas teses apontam para confundir revolução burguesa e revolução proletária, propriedade estatal com “setor socialista”, acumulação primitiva de capital com produção de excedente no socialismo, etc. Ora, a confusão, ou seja, a fusão de duas coisas radicalmente diferentes é apenas a manifestação de uma perspectiva de classe, burocrática, no qual um dos dois elementos é destruído e permanece apenas na linguagem. O socialismo com exploração, mais-valia, acumulação, pilhagem, aparato burocrático centralizado, partido centralizado e gestor, não é nada mais do que o capitalismo estatizado na prática que aparece como sendo o seu contrário. Essa magia das palavras, porém, não é perceptível imediatamente por alguém que não parte da perspectiva do proletariado e é aqui que reside o problema da reconstituição histórica e perspectiva de classe. Para alguém ler Preobrajenski e perceber a confusão e seu significado, seria preciso possuir valores, sentimentos e concepções antagônicos aos dele. Uma leitura “neutra”, “objetiva”, fundada em determinados métodos e concepções, realizada por portadores de determinados valores e sentimentos, não ultrapassaria o “dado”, ou seja, o discurso de Preobrajenski, o que significaria acreditar nele e tomar seu discurso em favor de um capitalismo estatal como discurso em favor do socialismo.

Este não foi o caso de Tragtenberg, que percebeu o caráter da obra de Preobrajenski e não só dele, mas também de Lênin, Trotsky, Stálin e vários outros, revelando os interesses de classe por detrás da legitimação do capitalismo estatal. Assim, a obra de Tragtenberg tem como mérito partir da perspectiva do proletariado e ao fazer isso revelar que por detrás das produções intelectuais existe uma camada profunda, e, para muitos, invisível, que é determinante no seu processo de produção.

Também é este elemento que permite ao pesquisador reconhecer o valor e significado das iniciativas proletárias e camponesas, tal como Tragtenberg faz quando analisa o caso da Ucrânia, de Kronstadt e dos Sovietes. Os acontecimentos históricos ganham visibilidade ao estarem envolvidos em um processo que é o da auto-emancipação do proletariado e de outros grupos explorados ou oprimidos e, assim, a vida e a morte não são apenas possibilidades abstratas ou fatos registrados, e sim manifestação de seres vivos, idéias, valores e sentimentos. O mesmo vale para as obras culturais, os livros não são vistos apenas como coisas materiais com textos escritos, mas como portadores de projetos, interesses, valores, sentimentos, concepções. Os livros são manifestações de seres humanos e se o livro é vazio, isto se deve ao vazio de quem o escreveu.

Enfim, Maurício Tragtenberg vai além da historiografia oficial e da história dos vencedores, por compartilhar com o proletariado a mesma perspectiva. A sua obra sobre a Revolução Russa, embora introdutória e resumida, reconta e faz reviver a história de uma sociedade que esteve à beira da transformação social e que perdeu a oportunidade, devido à derrota dos explorados diante dos seus “representantes”. Também apresenta uma lição metodológica, a de que o método não é algo reificado e fora das relações sociais, separado de quem o escolhe, produz e/ou usa. Desta forma, Tragtenberg recuperou a consciência teórica da Revolução Russa e fez avançar a consciência da história.
Artigo publicado originalmente em: História Revista (UFG), v. 13, p. 281-286, 2008



* Professor da UEG – Universidade Estadual de Goiás e UFG – Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia/UnB.
[1] Tragtenberg, Maurício. A Revolução Russa. São Paulo, Faísca, 2007; Tragtenberg, M. A Revolução Russa. São Paulo, UNESP, 2007.