Carecas de Subúrbio

CARECAS DE SUBÚRBIO

Maurício Tragtenberg

De repente, diretor ou professor pode ter diante de si um aluno com aparência atípica: botas de coturno, cabeça raspada pela metade, mil e uma tatuagens pelo corpo, inúmeros braceletes ou correntes pelo pescoço, que encontra um seu igual com a saudação de braço levantado, no lugar de "Heil Hitler" o "Oh, Xente!".

Estamos diante de um "careca" suburbano, universalizado pela alcunha de skin. O que significa isso?

O skin é um produto social da crise do capitalismo; já na Europa do início do século aparecia um movimento conhecido como "apache", que se singularizava pela vestimenta não-convencional, tendo como solo social os bairros suburbanos e pobres de Paris, constituindo-se no que a sociedade burguesa bem-pensante intitulava "a classe perigosa".

Hoje, com a desindustrialização ocorrida na Inglaterra e o concomitante brutal desemprego aliado à política recessiva neoliberal, criou-se um contingente de skins nos bairros suburbanos, composto de uma juventude sem amanhã, a quem o capitalismo oferece a lumpenização, a desclassificação social e o sentimento de que se trata de um contingente populacional composto de "supérfluos"; portanto, soldados sem causa que tendem a se constituir em forças de reserva da "direita", porões do conservadorismo "liberal".

Acresça-se a isso a crise na antiga União Soviética e no Leste Europeu, onde uma economia fundada na burocracia desmonta, iniciando-se uma lenta e dolorosa transição à economia de mercado, com todo o custo social bancado, como sempre, pelos trabalhadores.

Essa crise reacende velhos conflitos étnicos, nacionais, soterrados pelo Estado unitário, que reaparecem sangrentamente na Iugoslávia', na antiga União Soviética, nos conflitos regionais que envolvem azerbaijanos, quirguises, armênios e outras etnias.

Também nas metrópoles do Mercado Comum Europeu viceja uma população de turcos, argelinos, tunisianos, iugoslavos, utilizada como mão-de-obra para o serviço rústico, pesado. Como reação, surgem movimentos que cultivam o neonazismo, empurrando os imigrantes para fora das grandes cidades européias. Resta o problema: quem fará o trabalho pesado?

O racismo na Europa está na ordem do dia: é Le Pen na França, são os skins alemães fruto da desagregação da economia da Alemanha Oriental, os neofascistas no Norte da Itália, numa cruzada contra o "estrangeiro" visto como "inimigo".

No Brasil, uma política recessiva condena ao desemprego milhares de trabalhadores, emergindo uma juventude pobre de periferia que "não tem amanhã" e encontra no movimento dos "carecas de subúrbio" uma forma de protesto pelo "abandono" social que sofre pela falta de perspectivas profissionais ou sociais, tendo no racismo contra o negro, o nordestino ou o judeu um alvo para sua agressividade. Vale lembrar, entretanto, que violência é não só o confronto físico direto, mas também a falta de escolas, de atenção médica e de um futuro social.

Ataque a uma rádio nordestina em Guarulhos, agressão a pessoas da comunidade negra em São Paulo marcam uma escalada de racismo e violência preocupante.

Como, porém, esses "carecas de subúrbio" se vêem?

É nítida a intenção de o "careca" manter uma dignidade, de se auto-afirmar como trabalhador, como alguém que não é drogado nem ocioso. Ele diferencia-se do que chama de "marginal" por meio do trabalho sério, sem vender tóxico para sobreviver ou ' Atualmente a Iugoslávia passa por um processo de desintegração, tendo-se reduzido às repúblicas da Sérvia e de Montenegro. No entanto, os conflitos em seu território continuam, o que poderá resultarem mais divisões de áreas. (ICE.) 76 roubar a população pobre. Embora cultive a violência, não se considera um bandido", um violento que sobrevive sem trabalhar seriamente.

A raiva destrutiva dos "carecas" em relação ao sistema social e a seus valores dominantes não significa que não queiram participar dele, uma vez que assumem a "ética do trabalho".

"Um de meus entrevistados, por exemplo, mostrou-me orgulhosamente, em seu pequeno quarto no subúrbio, sua televisão, o aparelho de som, os discos, a sua pequena despensa, e disse-me 'tudo isso paguei com meu dinheiro'. Outros entrevistados posicionaram-se contra aqueles que andam ‘sujos', 'rasgados' como fazem, em sua opinião, punks e hippies'. `(...) adianta você andar pela rua todo sujo, rasgado (...) Assim você não vai conseguir ser ouvido e não pode difundir suas idéias.' Outros procuraram difundir para os subalternos a idéia do 'estudo'e do 'trabalho'(..)" (Marcia Regina da COSTA, Os Carecas do Subúrbio, p. 142-3 - Tese.)

Há os que procuram mostrar o caráter de protesto do movimento dos "carecas", diferenciando-o de movimentos ou ações de bêbados e drogados.

O ideal de integração no sistema e de ascensão social está presente entre os "carecas":

"é um movimento de protesto mas, ao mesmo tempo, uma busca de um lugar na sociedade, a idéia de vencer na vida, estudar, não `fumar', praticar cultura física"(COSTA, op. cit., p. 141).

O quadro conflitivo desses "carecas" reduz-se a conflitos com punks, hippies, roqueiros, considerados Inimigos". Para diferenciarem-se dos skins ingleses, os "carecas" brasileiros afirmam enfaticamente seu desinteresse pela promoção de algazarras ou conflitos em campos de futebol; afinal não têm a situação privilegiada dos skins ingleses, ou seja, não usufruem de seguro-desemprego, coisa impensável no Brasil.

Admitem pertencer a gangues, geralmente formadas por pessoas de um mesmo grupo etário, localização espacial e classe social. Essas gangues juvenis costumam ostentar estilo próprio de vestimenta para diferenciarem-se do homem comum e, com o crescimento de seus membros, podem transformar-se em tropas do crime organizado.

Tais gangues desenvolvem também um certo narcisismo primário através do culto ao corpo, característico da eugenia de nossa época, em que o importante é se tornar saudável, correr, andar e pular para "esticar" uma vida às vezes indigna da condição humana ou vazia de qualquer conteúdo. Daí a palavra de ordem:

 "Temos que crescer e nos fortalecer! Esportize-se. Afaste-se do vício. Todo 'careca' deve entrar numa academia e praticar ginástica. Temos que ficar preparados para enfrentar o dia-a-dia na cidade, mas de cabeça erguida, ou seja, não vamos deixar que o movimento 'careca' seja marginalizado. " (COSTA, op. cit., p. 144).

A vida cotidiana é concebida como uma guerra, onde o conhecimento de artes marciais torna-se uma das armas adequadas para enfrentá-la. Coturno, calças militares ou jeans, suspensórios, cabelos curtos ou rapados, é esta a forma como o "careca" apresenta-se à sociedade, seu visual preferido. Quanto às drogas, a maioria as rejeita; porém há exceções. Da pinga aos barbitúricos, da cola à maconha, desta ao ácido, essa é a trajetória de inúmeros skins. Há o relato de um ex-punk que ingressou no novo movimento e precisou deixar as drogas para ser aceito.

O culto ao corpo corre paralelo à preferência pelas tatuagens nas formas de aranha, teia, suástica e caveira. Fátima, irmã de Nazista, 19 anos, colocou-me que

"o 'Nando' tinha uma tatuagem no braço, uma suástica, mas jogaram ácido nele, na tatuagem, na delegacia, quando foi preso" (COSTA, op. cit.,p.178).

A violência é um dos valores cultuados por esses grupos. É comum andarem com armas brancas, estiletes, machadinhas ou armas de fogo. Um dos entrevistados, Paulo Punk, declara que:

"resolveu afastar-se do movimento quando um amigo dele tomou 17 facadas! Tudo por briga entre gangues', carecas contra punks, contra hippies, considerados como `inimigos'`, segundo um dos punks entrevistados pela autora. "Os carecas são 'complicados', eles são da periferia da zona leste e do ABC, cultuam o físico, tomam leite e lutam alguma coisa. Fora isso, eles têm umas características de grupo fascista, nacionalista, bandeira do Brasil desenhada" (COSTA, op. cit., p. 149).

A violência no grupo "careca" se constitui num meio de afirmação, é instrumentalizada pela polícia contra os chamados bandidos:

'A polícia até gosta quando a gente pega os bandidos, mas quando a gente quebra alguma coisa... eles vêm em cima e dá o maior pau na gente." (COSTA, op. cit., p. 151).

 Há, porém, "carecas" e punks da classe média-alta que nunca foram proletários, nem moraram em subúrbio, e que, por "curtição", acabam fazendo parte de uma banda musical.

Nesses movimentos opera muito a rejeição do "outro", da "alteridade", especialmente o ódio ao nordestino. É o que aparece no depoimento de Júlio César, morador na periferia, filho de costureira:

"O problema é que eles [os nordestinos] aceitam qualquer coisa e os salários caem. A melhor coisa era desenvolver essas regiões [Norte, Nordeste] para que eles ficassem lá."(COSTA, op. cit., 172).

Assim, a banda paulista WCHC tocava uma música cuja letra fala por si só:

"Migrante Você que vem pra cá, Buscar o que não tem lá, Maldito migrante, desista São Paulo não te agüenta. Você só suga o sangue paulista! Apenas mais um na concorrência. Empregos, mulheres, terras, Tudo isso você vai roubar. Volte para sua terra, migrante Filho da puta!!" (COSTA, op. cit., p. 172).

Isso, porém, não ficou sem resposta. Como há punks e "carecas" de direita, há também os de esquerda. Estes justificam o uso da violência como reação dos pobres contra a violência social, que se constitui na falta de escolas, creches e hospitais para a população periférica. Assim, expressaram sua reação à letra de música antinordestina da banda WCHC da seguinte forma:

"Eles estão brincando de fazer protesto, estes embalistas e fascistas, nazistas, fizeram uma letra com título 'Migrante' dedicada exclusivamente aos nordestinos. Nordestinos e brasileiros, vamos boicotar esses fascistas." (COSTA, op. cit., p.172-3).

Isso ocorre porque, entre punks, "carecas", encontram-se muitos militantes com tendências anarquistas. Há, por exemplo, punks que militaram no início do PT outros que se identificaram com o anarquismo, outros com o nazismo. Muitas vezes eram manipulados pelo Integralismo. O "careca" Mogi mantinha relação íntima com a extrema-direita, ocupando em 1988 a posição de dirigente no Partido Nacional Socialista Brasileiro - PNSB. Por sua vez, há também "carecas" recrutados entre vigilantes, uma vez que estes possuem arma e, na visão dos skins brasileiros, quem tem arma tem poder.

O Falange Anarquista n° 8, de janeiro/fevereiro de 1988, relata sua participação no Primeiro de Maio do seguinte modo:

"86 terminou com intensa repressão ao movimento de revolta dos jovens suburbanos e anarquistas no Brasil. Apesar disto, junto com os que se dispuseram a agir e não apenas a ficar no blá-blá-blá, nós do CL saímos à rua pela revolução socialista, libertária. No 1 ° de maio, uma passeata com mais de 600 pessoas atravessou o centro da cidade, gritando palavras anti-sistema e chamando o trabalhador para protestar. A passeata foi de iniciativa dos 'Carecas do Subúrbio' e teve importante apoio de nós do CL e do pessoal da 'Massacre Punk'."(COSTA, op. cit., p. 198).

Como se vi:, esses movimentos oscilam entre posições de direita nacionalista, racista e posições libertárias. Encontramos, às vezes, indivíduos que se autodenominam anarquistas e, ao mesmo tempo, nacionalistas. Racistas somente em relação a negros ou judeus; no restante, proclamam-se democratas.

Punks, "carecas" e skins são produtos dessa sociedade de massa desterritorializada, criada pelo capitalismo que procura submeter tudo à sua lógica implacável. Um mundo desenraizado, cosmopolita e desterritorializado produz pessoas desenraizadas nas grandes megalópoles modernas, os skins por exemplo. E a cultura de massa contribui para esse desenraizamento. Ela forma uma "mediocridade média" que se constitui no público para seus espetáculos. Daí o caráter espetacular da figura dos "carecas" ou skins. É o "inferno do mesmo" ou o "terror do mesmo", apontado por BAUDRILLARD, que skins ou "carecas" pretendem exorcizar.