sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Maurício Tragtenberg: contribuições de um marxista anarquizante para os estudos organizacionais críticos*

Maurício Tragtenberg: contribuições de um marxista anarquizante para os estudos organizacionais críticos* 

Ana Paula Paes de Paula** 

Sumário: 1. Introdução; 2. Visões do anarquismo: o marxismo anarquizante de Mauricio Tragtenberg; 3. Contribuições de Maurício Tragtenberg para os estudos organizacionais críticos; 4. Conclusão. S ummary: 1. Introduction; 2. Anarchist visions: anarchistic Marxism of Maurício Tragtenberg; 3. Contributions of Maurício Tragtenberg to critical organizational studies; 4. Conclusion. Palavras -chave: estudos organizacionais críticos; anarquismo; autogestão; teoria organizacional. Key words : critical organizational studies; anarchism; self-management; organizational theory 

Este artigo analisa as contribuições de Maurício Tragtenberg no campo da crítica da administração. Para tanto, são examinadas suas três principais contribuições para esses estudos, tendo como referência o marxismo anarquizante que permeia seu pensamento: a crítica da burocracia, a crítica das teorias administrativas e a crítica da co-gestão. A intenção é demonstrar que suas críticas estão diretamente relacionadas com a visão anarquista que sustenta seu pensamento libertário e sua defesa da autogestão. Concluindo, avalia-se a atualidade do pensamento de Tragtenberg em um contexto de revival e resgate da utopia anarquista, apontando caminhos para os estudos organizacionais que podem ser realizados de acordo com essa perspectiva. 

 1. Introdução 

A partir da década de 1990, os estudos críticos em administração começaram a ganhar espaço no campo dos estudos organizacionais. Esses estudos, voltados para a emancipação e a criação de sociedade e lugares livres da dominação, além de oferecerem insumos para uma maior reflexividade na análise das organizações (Alvesson e Deetz, 1999), vêm se organizando fundamentalmente na Inglaterra. No entanto, no caso brasileiro é possível constatar que estudos com o mesmo teor vêm sendo realizados há tempos por autores como Alberto Guerreiro Ramos, Maurício Tragtenberg e Fernando Prestes Motta. 

Partindo do princípio de que existe no Brasil uma tradição autônoma de estudos críticos, este artigo analisa as contribuições de Maurício Tragtenberg no campo da crítica da administração. Como observaram Segnini (2001) e Bruno (2001), Tragtenberg foi um dos pioneiros neste tipo de crítica e teve o mérito de realizá-las dentro de uma escola de administração. Por meio da sistematização dos livros Burocracia e ideologia (Tragtenberg, 1974) e Administração, poder e ideologia (Tragtenberg, 1980a), além de outros textos que compõem a sua obra, foi possível mapear suas três principais contribuições nesse campo do conhecimento:

* a crítica da burocracia como fenômeno de dominação e da visão de Weber como seu ideólogo, esclarecendo que Weber é um dos maiores críticos da dominação burocrática; 

* o estudo das teorias administrativas como produtos das formações socioeconômicas de um determinado contexto histórico que, ao manterem a divisão entre planejadores e executantes do trabalho, perpetuam a opressão do trabalhador e impedem sua autonomia;  

* a crítica da ideologia participacionista presente nas experiências de co-gestão e a defesa da autogestão como saída tanto para a emancipação dos trabalhadores quanto da sociedade civil. 

Essas contribuições de Tragtenberg, no entanto, ficam desprovidas de sentido quando não são examinadas a partir da moldura teórica que sustenta seu pensamento e orienta sua obra: o anarquismo. Para compreender essa face de seu pensamento é fundamental analisar também alguns de seus escritos políticos, que ainda não foram suficientemente explorados pelos acadêmicos da área de administração. A partir deles é possível apreender as intenções de seu trabalho como intelectual e jornalista, perceber com mais clareza a atualidade de seu pensamento, bem como entender o que move sua crítica da administra- ção, alinhavando uma obra que a princípio pode parecer fragmentada. 

Assim, na primeira parte deste artigo, analisa-se o pensamento anarquista de um modo geral e o marxismo anarquizante de Maurício Tragtenberg, em particular. Na segunda parte são examinadas as três principais contribui- ções do autor para os estudos organizacionais críticos — a crítica da burocracia, a crítica das teorias administrativas e a crítica da co-gestão e defesa da autogestão —, tendo como referência seu alinhamento com o anarquismo. Na conclusão, avalia-se a atualidade do pensamento de Tragtenberg em um contexto de revival e resgate da utopia anarquista. 

2. Visões do anarquismo: o marxismo anarquizante de Maurício Tragtenberg 

Antes de explorar as várias visões anarquistas, é importante chamar a atenção para o fato de que costuma ocorrer uma simplificação conceitual do mesmo, que em geral é apontado como uma negação do Estado, quando a origem da palavra quer dizer “contrário à autoridade”. Na realidade, quando o anarquismo propõe uma sociedade sem Estado e sem governo, está sugerindo uma sociedade sem autoridade e burocracia, o que não implica uma sociedade sem organização, mas uma sociedade organizada de maneira autônoma a partir das bases e fundamentada na educação integral dos indivíduos. 

A História das idéias e movimentos anarquistas de Woodcock (2002) evidencia que o anarquismo não é uma ideologia unívoca. Embora haja alguma unanimidade em torno da necessidade de abolir o Estado da valorização da individualidade e da importância da educação no processo revolucionário, existe uma grande heterogeneidade de opiniões, pois ainda que os seus defensores estejam de acordo em relação ao fim último de suas propostas, há divergências no que se refere à melhor tática para consegui-lo. 

Luizetto (1987) aponta pelo menos três escolas: 

* a individualista — representada por Max Stirner na Europa e Josiah Warren nos Estados Unidos, essa escola defende uma irrestrita liberdade individual opondo-se a Marx e às demais escolas anarquistas, pois não propõe modelos coletivos de produção; 

* a mutualista — representada por Proudhon, ocupa uma posição intermediária entre o modelo individualista e o modelo socialista. Defende a liberdade individual e a singularidade do homem, mas propõe uma sociedade entre os produtores independentes para constituir e administrar associações voluntárias, financiadas pelo banco do povo. Há uma polêmica em torno da visão que Proudhon tem da propriedade privada — alguns enfatizam sua posição de crítico, mas outros destacam que ele não defende sua abolição principalmente nos escritos tardios; 

* a socialista, que é composta por duas correntes: 

- a coletivista — encampada por Bakunin, que propõe a fusão entre a teoria federalista de Proudhon (a organização livre dos produtores independentes) e a teoria socialista (propriedade coletiva dos meios de produção e abolição da propriedade privada), defendendo que cada um seja remunerado de acordo com o seu trabalho; 

- a comunista — defendida por Kropotkin e Malatesta, que adota a fórmula de Bakunin, mas vê uma compatibilidade entre anarquia e comunismo, defendendo que cada um participe com seu trabalho e seja remunerado de acordo com seus desejos e necessidades. 

Segundo Costa (1980), com o tempo os mutualistas, considerados pelos seus oponentes meros reformistas, perderam a força para as correntes anarquistas socialistas. No século XX, essas correntes desembocaram no anarcosindicalismo representado por Rudolf Rocker, que após a morte de Kropotkin se tornou o maior valor intelectual do anarquismo internacional. Ainda que os anarquistas resistam à idéia de elaboração prévia de planos e programas a serem aplicados no caso do êxito da revolução social, Kropotkin sugere algum planejamento para evitar o caos que ocorreu na Comuna de Paris. Segundo Leval (2002), é Kropotkin que introduz o conceito de planificação, que pode ser definido como um planejamento da produção pelos trabalhadores por meio de assembléias e representantes diretos, que produziriam não decisões, mas projetos a serem apreciados e aprovados, realizando-se uma coordenação de atividades a partir de centros múltiplos. 

Os anarco-sindicalistas se caracterizam por ter uma concepção bem definida para a organização e coordenação da sociedade. Além disso, o anarcosindicalismo costuma apontar o sindicato como responsável pela organização da sociedade no lugar dos partidos políticos, mas frisando que esse sindicato seria diferente dos sindicatos tradicionais existentes, pois representaria a federação dos conselhos operários e não um órgão de defesa dos trabalhadores. Berthier (2002) descreve a concepção anarco-sindicalista de sociedade partindo da definição de autogestão: a elaboração de estruturas organizacionais que permitam que os próprios trabalhadores sejam responsáveis por sua emancipação. 

Essas estruturas seriam organismos de base que permitem a expressão dos trabalhadores tanto no plano da empresa quanto na comunidade em que estão inseridos, ou seja, organismos que são simultaneamente econômicos e políticos. Em um regime de autogestão, a organização geral da sociedade se daria por meio do federalismo, que é a representação e a expressão dos interesses coletivos dos trabalhadores. Assim, as decisões seriam tomadas por meio da discussão a partir da base até chegar ao cume, passando por uma sucessão de conselhos e organismos de deliberação que exprimem o pensamento, o interesse comum e as decisões coletivas. 

O anarquismo de Maurício Tragtenberg é um caso singular, pois não se alinha diretamente com nenhuma dessas tendências. É possível notar críticas à Bakunin (Tragtenberg, 1986b) e uma certa simpatia por Kropotkin, pois é a partir do seu pensamento que Tragtenberg (1987:7) faz sua definição de anarquismo: 

"uma sociedade que não está submetida a nenhuma autoridade vertical e em que as associações voluntárias interligadas substituem o Estado na tarefa de articular as partes da totalidade social. Sociedade basicamente fundada na solidariedade, na qual esta é obtida por acordo entre os diversos grupos sociais, territoriais e profissionais livremente estabelecidos no âmbito da produção e do consumo social". 

Teríamos assim uma rede entrelaçada de uma infinita variedade de grupos e federações locais, regionais, nacionais e internacionais, voltada para os mais diversos objetivos (produção, consumo e troca, comunicações, serviços sanitários, educação, proteção mútua) e necessidades (científicas, artísticas, literárias, de relacionamento social). 

Entre os estudiosos do pensamento de Tragtenberg não há um acordo sobre suas posições anarquistas, mas o próprio Maurício se define como um marxista anarquizante (Tragtenberg, 1991). Declara assim que aceita as teses econômico-sociais de Marx, mas se opõe ao marxismo-leninismo-stanilismo-trotskismo que gerou o fetichismo do partido político e da representação parlamentar e, na opinião dele, é responsável pelo fracasso das experiências socialistas. Defende que o anarquismo tem uma contribuição importante no nível das superestruturas, na análise dos movimentos sociais, na questão da luta contra a burocracia e na defesa da liberdade como valor. É importante notar que em seu primeiro livro Planificação: desafio do século XX (1956), Tragtenberg já demonstrava sua afinidade com o anarquismo, pois realiza uma crítica da estatização dos meios de produção nos regimes capitalistas e socialistas então vigentes apontando a planificação sugerida por Kropotkin como caminho de mudança. 

Por outro lado, a análise da obra de Tragtenberg permite situá-lo entre os anarco-marxistas, que também são denominados marxistas libertários, socialistas libertários, comunistas libertários, comunistas conselhistas ou marxistas autogestionários. Também não há um consenso sobre o que seria o anarco-marxismo, pois alguns de seus adeptos não aceitam as posições do suposto anarco-marxista Daniel Guérin. 

No entanto, há um anarco-marxismo descrito por Viana (2005) que se aproxima muito das idéias defendidas por Tragtenberg e que se caracteriza por: 

* uma simpatia pelas teses conselhistas e luxemburguistas, ainda que se façam ressalvas ao anarquismo de Rosa Luxemburg, que foi uma mulher de partido, mas fez uma defesa séria da liberdade política; 

* uma leitura heterodoxa do marxismo, expressa na crítica da ditadura do proletariado e na afinidade com autores como Pannekoek, Korsch, Mattick, Makhaïski, Gorter e Bordiga; 

* uma negação do papel de vanguarda do partido e do sindicato, que é considerado uma ideologia da burocracia; 

* uma negação das experiências do socialismo real e da revolução bolchevique, em especial da burocratização nelas promovidas, rejeitando a necessidade de um período de transição entre o capitalismo e o comunismo; 

* uma identificação entre o comunismo e a autogestão. 

Na obra de Tragtenberg essas características são uma constante. Por exemplo, no artigo “Rosa Luxemburgo e a crítica dos fenômenos burocráticos” (1991), ele reconhece que Rosa não é uma anarquista, mas elogia sua crítica à burocratização dos partidos, ao projeto da socialdemocracia e ao  sindicalismo tradicional, bem como sua ênfase no papel dos conselhos. De acordo com Silva (2004), Tragtenberg é muito cético em relação às soluções negociadas no âmbito do Estado e por isso afirma que a autogestão seria a única estratégia eficaz na luta dos trabalhadores. Já nos livros Reflexões sobre o socialismo (1986c) e A revolução russa (1986a), Tragtenberg deixa claras suas críticas ao regime bolchevique, que teria abafado levantes autogestionários como a rebelião de Kronstad, a Makhnovistchina, a revolução húngara e a primavera de Praga, além de burocratizar-se e absorver a organização taylorista do trabalho. 

Em Marxismo heterodoxo (1981a), Tragtenberg critica as noções de ditadura do proletariado e partido hegemônico propagadas pelos leninistas e stalinistas. Ele discorda que Marx aceitasse tais noções e resgata o pensamento de marxistas heterodoxos como Pannekoek, Matick, Makhaïski, Bordiga e Gorter, que defendem a autogestão. No artigo “Marx/Bakunin” (1986b), Tragtenberg também sai em defesa de Marx, rejeitando as acusa- ções de autoritarismo feitas por Bakunin a Marx na Primeira Internacional Socialista e criticando o centralismo existente nas organizações secretas que o próprio Bakunin fundava. Na sua visão, seriam corretas as leituras de Rosa Luxemburg, Korsch e Lukács feitas da obra de Marx, pois elas indicam que a ditadura do proletariado se assemelha à estrutura autogestionária da Comuna de Paris. 

Como é possível perceber, a defesa da autogestão, na figura de organizações horizontais como comitês de greve, comissões de fábrica, conselhos operários e organizações de base, é central no pensamento de Tragtenberg (1986c). Na sua visão, o predomínio da autogestão nos campos econômico, social e político desafia a verticalidade das relações com o Estado, criando condições para extingui-lo, uma vez que as decisões e a execução das mesmas ficariam nas mãos dos trabalhadores e dos cidadãos. Entre as experiências reais de autogestão, Tragtenberg indica a Guerra Civil espanhola que se deu no período de 1936-39. Nessa época ocorreu de fato uma coletivização das terras, das fábricas e dos meios de transporte no país, mas o levante autogestionário acabou sendo sabotado durante o combate ao franquismo. Tragtenberg também segue a tendência anarquista no que se refere ao desenvolvimento de iniciativas de natureza educacional, discutidas por pensadores como Proudhon, Robin e Ferrer. Na obra de Tragtenberg (1979) isso se manifesta na crítica da universidade e na denúncia da delinqüência acadêmica. Maurício denuncia em seus escritos as relações cada vez mais opressivas e desiguais entre professores, alunos e burocratas do ensino, além da transformação da universidade em uma mera formadora de quadros para mercado, uma “multiversidade” que ensina tudo que o aluno possa pagar, descompromissada com a produção do conhecimento e do saber. 

Segundo Silva (2004), o olhar de Tragtenberg sobre a educação é aná- logo ao olhar pedagógico dos militantes anarquistas e libertários, baseando-se na autogestão, na autonomia do indivíduo e na solidariedade. Dessa forma, Tragtenberg defende: o autodidatismo tanto no ensino informal quanto no ensino formal, a pedagogia antiburocrática, as decisões em assembléia, a postura independente de partidos políticos e a tradução de idéias complexas para uma linguagem acessível. Seu exercício dessa pedagogia se manifesta na postura de intelectual orgânico dos trabalhadores no tempo em que redigiu a coluna “No batente” do jornal Notícias Populares. 

3. Contribuições de Maurício Tragtenberg para os estudos organizacionais críticos 

Nesta seção, analisa-se as três principais contribuições de Maurício Tragtenberg para os estudos organizacionais críticos: a crítica da burocracia, a crítica das teorias administrativas e a crítica da co-gestão e defesa da autogestão. Durante esse percurso, utiliza-se como referência o alinhamento de Tragtenberg com o pensamento anarquista de modo a revelar que é esse projeto político que motiva suas críticas. 

Estudo de Weber e crítica da burocracia 

Maurício Tragtenberg foi um estudante criterioso de Weber e sua atração pela obra do autor se justifica por uma identidade com as preocupações dele em relação aos problemas da racionalização, da secularização e da burocratiza- ção das estruturas sociais. O prefácio de Tragtenberg no livro Metodologia das ciências sociais, de Weber, revela que essa identidade não é motivada pela questão da burocracia em si, mas pela inquietação weberiana com dois fenô- menos básicos da modernidade, que circundam a burocratização: a perda do significado da vida e a perda da liberdade. Logo, é como pensador libertário que Tragtenberg busca analisar Weber. Assim, a crítica da burocracia que faz a partir do pensamento de Weber está diretamente conectada com o projeto emancipatório anarquista no qual aposta. 

Em Burocracia e ideologia (1974), Tragtenberg realiza uma leitura rigorosa da obra de Weber, mostrando não só a validade como também os limites de seu pensamento. Traça um retrato vivaz do autor ao mostrar sua angústia com a crise do liberalismo alemão do seu tempo, além de discutir as profecias weberianas. Para Tragtenberg, o interesse de Weber pela política e a burocracia está relacionado com suas preocupações quanto à realidade social alemã, pois Weber pressentia o risco da burguesia aliar-se com a burocracia contra a democracia, o que de fato ocorreu depois por meio do nazismo. Além disso, Weber também antecipou a desilusão do socialismo real apontando que a estatização da economia na Rússia implicaria o aumento da burocratização redundando em uma ditadura da burocracia (Tragtenberg, 1976). Da mesma forma, Weber anteviu a falácia revolucionária da socialdemocracia, uma vez que viria a converter o marxismo em uma ideologia justificativa da burocracia, manifesta no aparelhamento necessário ao welfare state. 

Segundo Tragtenberg (1974), para Weber democracia significa a influ- ência dos cidadãos na administração da economia. Na visão weberiana, um parlamento ativo auxilia nessa tarefa, pois quando o Parlamento é denegrido, o capitalismo e a burocracia costumam se aliar contra a democracia, impedindo que os cidadãos se manifestem. Por esse motivo, Weber critica a “democratização passiva” condicionada pela modernização, que leva à conversão dos políticos em funcionários públicos, substituindo o ethos da vocação política pelo ethos da burocracia. A alternativa que Weber sugere à burocracia é a organização dos consumidores em cooperativas com produção regulada pela procura e mediada por um parlamento livre que os defendesse. 

Tragtenberg ainda demonstra que Weber aponta a burocracia como um tipo de poder e organização e como um sistema no qual a divisão do trabalho é racionalmente estabelecida e se dirige para os fins. Assim, a burocracia se caracteriza pelo formalismo, as normas escritas, a estrutura hierárquica e a divisão horizontal e vertical do trabalho. Dessa forma, para Tragtenberg, Weber não estuda a burocracia para salientar suas virtudes organizacionais; pelo contrário, o faz para refletir como podemos nos defender de seu avanço implacável e de sua quase impossibilidade de destruição. Além de demonstrar que Weber não é um ideólogo da burocracia, Tragtenberg enfatiza que a mesma é um fenômeno historicamente situado e uma forma de dominação. Na verdade, a burocracia transcende o tipo ideal weberiano, pois não se esgota como fenômeno técnico e organização formal; é acima de tudo um fenômeno de dominação e um sistema de condutas significativas. Assim, para caracterizar a burocracia não basta uma enumeração de critérios: é preciso um estudo de sua dinâmica interna e da forma como ela se enraíza na sociedade e aumenta seu poder. Analisando a teoria da burocracia em Hegel e Marx, que examinam a classe de funcionários, Tragtenberg conclui que ao se restringir à questão da organização formal, o modelo weberiano deixa de explicar situações como coletivismo burocrático. 

Nessa situação, a burocracia não é agente dos detentores do poder econômico como ocorre no capitalismo clássico, pois ela própria monopoliza os poderes econômico e político, tendendo a se tornar autônoma como um poder acima da sociedade. Em outras palavras, não é o tipo ideal weberiano que determina o que é ou não uma burocracia, de modo que identificá-la pelas características elencadas por Weber não é suficiente. Há uma burocracia quando se tem um grupo que, a pretexto de representar os interesses coletivos, monopoliza os poderes econômico e político, ou é agente dos detentores do poder econômico, para validar seus interesses privados, afastando a massa e/ou os trabalhadores do processo decisório. As estratégias utilizadas pelo referido grupo não serão sempre as mesmas e nem as suas características. Assim, para identificar a burocracia na estrutura da empresa, é preciso transcender o hábito de caracterizá-la a partir do tipo ideal weberiano para interpretá-la como um fenômeno historicamente situado e uma forma de dominação. Tragtenberg concorda com o diagnóstico de Weber sobre a burocracia, mas como marxista anarquizante discorda da posição liberal weberiana que, em plena crise do liberalismo, continua apontando o Parlamento como via para a democracia. 

Dessa forma, utiliza o pensamento weberiano para analisar o fenômeno burocrático, mas busca outros caminhos para a solução desse problema, valorizando a autogestão. Tomando a análise do pensamento de Weber como ponto de partida, defende que o exame das teorias administrativas deve partir da burocracia como poder, pois ela é aparelho ideológico que congrega essas teorias e também é produto e reflexo do contexto histórico e socioeconômico no qual está inserida. 

Crítica das teorias administrativas 

O interesse de Tragtenberg pelas teorias administrativas está no bloqueio que elas representam para a autogestão na medida em que promovem a separação entre os planejadores e executantes do trabalho, oprimindo e controlando o trabalhador. 

Assim, ele estuda as teorias administrativas como produtos de determinadas realidades históricas, analisando principalmente a Escola Clássica e a Escola de Relações Humanas. Tragtenberg (1974) parte das seguintes premissas: 

* as teorias administrativas são produtos das formações socioeconômicas de um determinado contexto histórico, de modo que são extremamente dinâmicas na sua potencialidade de se adaptar às demandas do modelo de acumulação capitalista e regulação social vigentes; 

* as teorias administrativas se expressam de duas maneiras: 

- ideologicamente, ao se manifestarem como idéias desistoricizadas que recorrem a disfarces mais ou menos conscientes para esconder a verdadeira natureza da situação; 

- operacionalmente, ao constituírem práticas, técnicas e intervenções consistentes com essas idéias. 

Em Burocracia e ideologia (1974), Tragtenberg afirma que as teorias administrativas, inspiradoras do modo fordista de produção, constituem harmonias administrativas, uma vez que recorrem a uma abordagem positivista das relações sociais. Na sua visão, tal inspiração positivista levou as teorias a se caracterizarem pela negação, ou manipulação dos conflitos, pela utilização de mecanismos diretos ou indiretos de controle social, que garantem a produtividade e promovem um ordenamento harmônico das relações no mundo do trabalho. 

Constitui-se, assim, na visão de Tragtenberg, a ideologia da harmonia administrativa que, ao dissimular a natural tensão entre os interesses dos empresários e dos trabalhadores, dispersa as energias individuais e sociais direcionadas para a democratização das relações no mundo do trabalho. Isso possibilita a perpetuação das relações de dominação, reduzindo as perspectivas de emancipação humana nas organizações. Em outras palavras, a harmonia administrativa favorece a produtividade e a ordem nas organizações, mas está muito longe de promover a liberdade do trabalhador e viabilizar a autogestão. 

Antes de tratar das teorias administrativas propriamente ditas, Tragtenberg procura reconstituir o contexto histórico que permitiu a reprodução das mesmas, bem como resgata as idéias de alguns sociólogos sobre a consolida- ção do capitalismo. Seu ponto de partida é a Revolução Industrial, analisando a situação da Inglaterra, onde tudo começou e se desenvolveu em função do primeiro impulso de acumulação de capital. Esse impulso inicial envolve dois fatores: o cercamento de terras e a Revolução Comercial, que se apóia na indústria têxtil e na Marinha Mercante. Em seguida, Tragtenberg compara a Inglaterra e a Alemanha, onde a Revolução Industrial foi gradual e incompleta, uma vez que persistiu o sistema de guildas e faltou um Estado mais centralizado. 

Discute então a reação intelectual à Revolução Industrial que partiu dos positivistas ligados ao socialismo utópico como Saint-Simon, Proudhon, Fourier e também de Karl Marx. Os primeiros se notabilizaram por negar o espírito revolucionário e louvar as soluções pacíficas e organizadoras para restaurar o progresso e a ordem social. Já o marxismo se destaca por ser uma filosofia da ação, baseada na vontade humana, que fomentaria uma revolução a fim de destituir a classe burguesa de seu poder. 

Com a segunda Revolução Industrial, as teorias sociais de caráter totalizador e global dos positivistas e as teorias de Marx dão lugar às teorias microindustriais de alcance médio, que auxiliariam na transição do capitalismo liberal para o capitalismo monopolista. Segundo Tragtenberg, o capitalismo mo­nopolista foi produto de um sistema econômico no qual se estabeleceram grandes corporações que tinham o controle do mercado e ambicionavam produzir em larga escala. 

No início do século XX as corporações buscavam meios de maximizar a produtividade pelo uso das máquinas e da intensificação do trabalho e a conjuntura histórica e econômica daquela época favoreceu a racionalização da produção. Taylor foi de encontro a essas expectativas ao criar um sistema de produção no qual havia uma “única maneira correta de se executar uma tarefa”, determinada pela medição dos tempos e movimentos e regulada pelo estabelecimento de cotas de produção, que significava uma remuneração proporcional à quantidade de trabalho realizado. 

Em suas análises, Tragtenberg destaca que a implantação do taylorismo pressupõe a existência de empresas com grande poder econômico e político, a debilidade sindical dos operários, a ausência de legislação social e o predomí- nio da oferta sobre a procura no mercado de mão-de-obra. Tragtenberg também explora a formação quaker de Taylor com intuito de mostrar como a ética protestante, no sentido weberiano, permeia o taylorismo. Na sua visão, o ethos racionalizador do taylorismo foi complementado pelas teorias de Fayol que, inspiradas nas estruturas militares, demarcaram os parâmetros essenciais da organização burocrática: o formalismo e a hierarquia. Assim, da combinação entre a racionalização do trabalho na fábrica e nas estruturas administrativas nasceu a escola clássica. 

De acordo com Tragtenberg, partindo desse ideário e práticas, os representantes da escola clássica viabilizaram a primeira fase do capitalismo monopolista, mas suas tentativas de obter, por meio da força, a harmonia nas relações de trabalho, se mostraram bastante limitadas. Uma vez que os métodos tayloristas em nada contribuíam para reduzir a dissonância cognitiva do funcionário em relação à exploração de sua força de trabalho, abriu-se espaço para contestações individuais e organizadas ao sistema, que acabaram fortalecendo o sindicalismo e demandando uma nova forma da administração lidar com os conflitos entre capital e trabalho. Analisando esse fenômeno, Tragtenberg demonstra como a escola das relações humanas emerge e redefine a lógica da eficiência taylorista como lógica de cooperação. 

Tragtenberg então recorre à vertente positivista e procura estabelecer um paralelo entre o pensamento de Elton Mayo e de Émile Durkheim. Na sua visão, foi partindo das considerações de Durkheim que Mayo concluiu que os conflitos são desintegradores da sociedade e passou a defender a revalorização dos grupos informais na organização como forma de combater a sensação de anomia (desenraizamento) e promover o equilíbrio das rela- ções. A partir desse exame crítico, Tragtenberg revela que o positivismo é a base da lógica cooperativa e integradora que permeia a escola das relações humanas. 

Na sua visão, Mayo reequacionou a lógica eficientista da escola clássica a partir das máximas cooperação, integração e participação. Nisso residiria o caráter ideológico da escola das relações humanas: ela procura dissimular a dominação por meio de discursos e práticas participativas, desviando a aten- ção de seu objetivo central, que é manter a produtividade nas organizações e reduzir as tensões entre capital e trabalho. Por outro lado, a escola das rela- ções humanas também herda características tayloristas, pois prossegue escamoteando os conflitos, uma vez que apenas substitui a contenção direta pela manipulação, além de manter a separação entre planejamento e execução no desenvolvimento das tarefas. 

No que se refere à abordagem sistêmica, Tragtenberg afirma que os seus modelos procuram soluções de equilíbrio, além de máxima produtividade, racionalização e eficiência, ocultando antagonismos sociais e otimizando o presente em uma ruptura com o processo histórico. Tragtenberg também não poupa críticas aos processos de automatização e informatização, que idealmente eliminariam o trabalho simples, transformando o conhecimento em força produtiva, mas não o fazem, porque há temor de depreciação do capital em conseqüência do progresso tecnológico. Na sua visão, a automação não elimina as tarefas parceladas e repetitivas, pois cria outras e não leva necessariamente à especialização profissional, pois podem se tornar independentes dos operadores. A informática estaria então diminuindo o custo de reprodução ampliada do capital e aumentando a acumulação da mais-valia relativa, pois ela favorece a centralização das decisões e é um recurso para manter a taxa média de lucro, na medida em que reduz as despesas gerais e o custo da produção

Em síntese, ao analisar as duas principais escolas administrativas da primeira metade do século, além da abordagem sistêmica, Tragtenberg vislumbrou as ideologias que permeariam o nosso presente, que se baseiam no contingencialismo e nas tecnologias de informação. Em um trabalho no qual revisita o pensamento de Tragtenberg, Paes de Paula (2002) aprofunda como suas idéias ainda se aplicam ao atual contexto capitalista e às suas práticas de gestão. 

Crítica da co-gestão e defesa da autogestão 

É importante salientar que, embora Tragtenberg se dirija explicitamente à escola das relações humanas e à psicologia social, por vezes ele está se referindo à escola comportamental, que começou a se constituir durante a década de 1940; é herdeira do ideário da escola de relações humanas e exerceu grande influência nas empresas brasileiras durante toda a década de 1970. Pela abordagem behaviorista, expressa nas teorias de autores como Abraham Maslow, Frederick Herzberg, Douglas McGregor, Rensis Likert e Chester Barnard, essa escola procurou se posicionar como uma legítima opositora da escola clássica. No entanto, a tentativa não a isenta de suas dívidas com o psicologismo e com o funcionalismo. Na verdade, utilizando técnicas como a dinâmica de grupo, a liderança não-diretiva e o aconselhamento, entre outras, a escola comportamental prosseguiu legitimando o que Tragtenberg chama de ideologia participacionista. 

 É com essa argumentação que Tragtenberg radicaliza em seu livro Administração, poder e ideologia (1980a) as críticas à escola comportamental. Analisando as empresas brasileiras na década de 1970, Tragtenberg demonstra que, ao utilizar técnicas participativas, estas apenas estimulam nos funcionários uma consciência de que são importantes no processo decisório, quando na verdade apenas endossam decisões que já foram tomadas. Para Tragtenberg, a escola comportamental representa a negação e a evitação do conflito de classes na medida em que psicologiza, a partir da abordagem behaviorista, os problemas do trabalhador, tratando-os como questões individuais e grupais e não como um reflexo do contexto social. Em outras palavras, ao interpretar tensões procedentes das relações entre capital e trabalho como problemas individuais e de personalidade, o psicologismo oculta os conflitos políticos e impossibilita que os mesmos sejam equacionados como uma questão de partilha de poder. 

Com essa crítica, Tragtenberg (1980a) abre caminho para analisar a falácia da co-gestão tanto nas empresas quanto no Estado. De acordo com a sua definição, a co-gestão é entendida oficialmente como um equilíbrio de poderes visando ao bom funcionamento da empresa e à participação nos lucros. Nas organizações, a co-gestão aparece na figura dos conselhos, das comissões e dos comitês de empresa e para estudá-la Tragtenberg leva em conta as estruturas, o poder e a função dos mesmos. Com esses critérios, ele analisa as experiências alemã e francesa, demonstrando que em ambos os casos é possível constatar que a co-gestão não abre espaço para contestação dos trabalhadores e nem altera o poder dos grupos financeiros que dominam as empresas industriais. Além disso, Tragtenberg verifica que a participação não diminui o poder da direção, além de ocultar os conflitos, de modo que a co-gestão não passa de uma pseudoparticipação e configura mais uma “panacéia administrativa”. 

Com essa análise, Tragtenberg busca valorizar a autogestão, ou seja, a organização da produção em bases democráticas e cooperativistas pelos próprios trabalhadores. É neste contexto que ocorre sua defesa da tradição luxemburguista e conselhista, representada, entre outros teóricos marxistas por Pannekoek, que desenvolveu uma teoria de conselhos de trabalhadores na indústria. Tragtenberg vê nos conselhos autogestionários um papel estratégico para autonomizar os trabalhadores em relação ao Estado e aos sindicatos e também defende as iniciativas da sociedade civil como a democracia direta. 

De acordo com Silva (2004), entre as experiências destacadas por Tragtenberg está a comissão de fábrica da Asama em São Paulo, que seria uma contraposição à comissão da Ford em São Bernardo do Campo. A comissão da Asama se destacava por não ser tutelada e nem atrelada ao sindicato, ter membros com mandato revogável, respeitando o princípio de horizontalidade das relações e funcionando apenas como um órgão consultivo (Tragtenberg, 1981b; Almeida, 1991). A cooperativa de costureiras de Monlevade, em Minas Gerais (Tragtenberg, 1981c), é outra experiência salientada por ele, pois nessa experiência a organização da produção era supervisionada em rodízio pelas associadas e a administração estava nas mãos de um conselho que dispensava o gerente técnico. 

No campo da gestão pública, o destaque fica para a democracia participativa de Lages, em Santa Catarina (Tragtenberg, 1980b, 1982), baseada no investimento na agricultura, nas hortas e pomares comunitários, nos mutirões para habitação, na medicina preventiva, na educação associada ao trabalho, no incentivo à cultura popular e nas associações de moradores. Tragtenberg (1981d, 1982) também ressalta a administração popular de Boa Esperança, no Espírito Santo, onde as comunidades discutiam medicina preventiva, saneamento básico, implantação de cursos profissionalizantes, produção agrícola e industrial, infra-estrutura, educação e segurança por meio do Conselho Municipal de Desenvolvimento, que contava com a participação de lideranças populares. 

No entanto, Tragtenberg (1981e) reconhece que essas práticas não constituem uma alternativa global ao sistema, uma vez que não promovem mudanças estruturais. Apesar disso, ele acredita que elas mostram que o povo tem capacidade de fazer e criar dentro das condições mais adversas. Na sua visão, uma tentativa de ruptura estrutural com o sistema, no contexto da abertura política que então se processava (década de 1980), poderia gerar uma repressão desestruturadora das comunidades de base, dos sindicatos e das associações de bairro que levaram anos para se constituírem. Suscita curiosidade o que ele diria sobre essas experiências hoje, em um contexto democrá- tico, considerando que 10 anos mais tarde (Tragtenberg, 1991) explicitaria sua desilusão com a socialdemocracia brasileira, criticando inclusive o Partido dos Trabalhadores (PT). Na sua visão, pelo projeto de levar um operário à presidência, o PT acabaria possibilitando a ascensão social de uma pequena burguesia ao invés de uma verdadeira mudança social. 

4. Conclusão 

Neste artigo, descrevemos e avaliamos as contribuições de Tragtenberg para estudos organizacionais críticos utilizando como referencial seu marxismo anarquizante. Foi possível analisar como as críticas que Tragtenberg faz à burocracia, às teorias administrativas e à co-gestão são motivadas por suas tendências anarquistas e por sua defesa da autogestão tanto nas organizações empresariais quanto na sociedade civil. 

Diante dessas evidências, é pertinente questionar a atualidade das idéias e proposições de Tragtenberg no mundo em que vivemos. Contrapondo as mesmas com a realidade na qual estamos imersos é interessante observar que a sua produção é de grande contemporaneidade, pois em um contexto de decadência do socialismo real e de crise do neoliberalismo, o anarquismo emerge como a utopia do nosso tempo. O movimento de resistência à globalização e ao neoliberalismo vem sendo classificado por alguns autores (Graeber, 2002) como um movimento anarquista, por se basear nas redes horizontais, nos princípios de descentralização e na democracia não-hierárquica ao invés de recorrer às estruturas top-down como os estados, os partidos políticos e as corporações. 

Antunes (2005) acredita que estamos testemunhando um retorno à literatura libertária em suas mais diversas variantes, apontando como exem-plo o livro de Hardt e Negri (2004) O trabalho de Dionísio, mas discorda da existência de um revival do anarquismo no século XXI. Outros autores são mais otimistas, como Chomsky (2004), um dos defensores contemporâneos do anarquismo, simpatizante do luxemburguismo, do conselhismo operário de Pannekoek e do anarco-sindicalismo de Rudolf Rocker, mas crítico de Marx na mesma linha sustentada por Bakunin. Na sua visão, as idéias anarquistas são apropriadas para nossa época, pois se ajustam à organização de uma sociedade industrial avançada e altamente complexa na medida em que a industrialização e o avanço tecnológico viabilizam a autogestão em larga escala. 

Castells (2005) vai na mesma direção, uma vez que acredita que o anarquismo se adiantou em seu tempo, pois enquanto o marxismo ortodoxo parece ter ficado confinado ao século XX, o anarquismo emerge com nova vitalidade no século XXI, por se mostrar um instrumento de luta alinhado com as atuais condições. Uma vez que o anarquismo busca conciliar a autonomia pessoal e local com a complexidade da organização produtiva e da vida cotidiana no contexto de um mundo industrializado e interdependente, a tecnologia se tornou a sua principal aliada, pois possibilita que organizações autônomas debatam, votem e administrem em uma rede interativa de comunicação. 

O anarquismo também é atual para Newman (2003), que acredita que a teoria pós-marxista e a política radical de autores como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe precisa reconhecer a contribuição do anarquismo clássico à conceituação de um campo político totalmente autônomo, uma vez que vem se mantendo silenciosa a respeito dessa tradição revolucionária. Além disso, para o autor, o anarquismo se beneficiaria com a incorporação de perspectivas teóricas contemporâneas, como a análise de discurso, a psicanálise e o pós-estruturalismo. Aliás, o pós-estruturalismo é visto por Newman como uma orientação fundamentalmente anarquista, na medida em que tem como projeto desmascarar a autoridade das instituições e contestar práticas de poder dominantes e excludentes. Newman também vê uma vantagem em aproximar o pós-estruturalismo do anarquismo fundando um pós-anarquismo: atribuir ao primeiro um conteúdo ético-político adequado ao agenciamento individual e à resistência no contexto de relações de poder onipresentes. 

Finalizando, vale a pena frisar que, considerando a atualidade do anarquismo, a perspectiva de Maurício Tragtenberg pode ser valiosa para os estudos organizacionais críticos, pois abre novos caminhos para a exploração teó- rica, como os autores anarquistas e os marxistas heterodoxos. Por outro lado, as cooperativas, as organizações não-governamentais, os movimentos sociais, os conselhos, bem como outras formas de organização de inspiração autogestionária, se tornam campos férteis para pesquisa, pois envolvem modelos de organização complexos e sofisticados, pois se voltam para a auto-organização e participação. Nesse contexto, é importante lembrar o registro a partir do qual os pesquisadores interessados nessa abordagem precisam trabalhar: o anarquismo é uma negação da autoridade, mas não da organização, que deve se dar de uma maneira autônoma a partir das bases, evitando as armadilhas da burocratização. 

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∗ Artigo recebido em dez. 2007 e aceito em abr. 2008. ∗∗ Professora adjunta pela Face/Cepead/Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pósdoutora em administração pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eaesp/FGV), doutora em ciências sociais pelo IFCH/Universidade de Campinas (Unicamp), mestre em administração pública e governo pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo/Fundação Getulio Vargas (Eaesp/FGV). Endereço: Rua dos Aimorés, 2.139, apto. 903 — CEP 30140-720, Lourdes, Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: appaula@face.ufmg.br.

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