UMA LEITURA LIBERTÁRIA DE MARX [*]
Maurício Tragtenberg
Escolhi um tema – uma leitura
libertária de Marx – e na hora de montar o esquema dissertativo dei-me conta da
amplitude da escolha. Aí vi que poderia dar como subtítulo ao tem mais ou menos
“Deus e o Mundo”.
De qualquer maneira, ao escolher esse
tema, ele vinha de encontro a uma reflexão de muitos anos, que se iniciou
primeiro com a leitura de Karl Marx e depois com a leitura de seus opositores,
especialmente Bakunin (1814-1876). O problema de Marx e Bakunin é o seguinte:
em geral, ou se é um adepto fanático ou se é um inimigo rancoroso. As duas
posições não são muito inteligentes.
Em primeiro lugar, Marx nunca usou a
expressão marxismo. Esse foi um termo usado por Bakunin para definir as pessoas
que atuavam em torno de Marx. Poderia dizer que o termo marxismo não é
monolítico; o marxismo, enquanto conjunto de textos, imbrica em várias
leituras. Seus opositores – a Primeira Internacional, os chamados anarquistas,
embora prefira usar o termo socialismo libertário – têm se destacado muito por
uma espécie de anticlericalismo. O problema é que o anarquismo, enquanto
conjunto de textos, não desenvolveu uma crítica sistemática do capitalismo, do
Estado, da burocracia e do autoritarismo. Lendo os textos econômicos
anarquistas pode-se perceber que a reação a isto é mais emocional do que
propriamente estruturada.
Atribui-se a Marx a proposta de Estado
do povo ou Estado operário, enquanto o anarquismo propõe a abolição pura e
simples do Estado. Marx proporia uma estrutura disciplinada e uma ditadura do
proletariado. Ele seria um determinista econômico, enquanto os anarquistas
enfatizam o aspecto psicológico, subjetivo, da revolução, criticando o marxismo
em função de ser uma doutrina de intelectuais que elaboram com bizantina
complexidade o método dialético para que os líderes controlem o movimento.
O outro ponto é que o anarquismo
proporia uma organização horizontal, igualitária e democrática, e Marx, uma
organização hierárquica, centralizada, com base no conceito de vanguarda. Em
suma, existe o estereótipo de que Marx é um autoritário e Bakunin um
libertário. Depois de ler tanto um quanto outro, cheguei a algumas conclusões,
um pouco diferentes do que muita gente espera.
A primeira é que o Estado do povo é um conceito que
Marx nunca usou. Na “Crítica ao Programa de Gotha”, ele justamente faz a
crítica do chamado Estado do povo ou Estado popular.
Quanto ao determinismo econômico,
fundamentalmente o que encontrei em Marx é a rejeição do materialismo. Numa
carta de 27 de setembro de 1890, Engels critica isso, dizendo que é o homem
real que luta, que a história não é feita deterministicamente de maneira rígida
por leis econômicas impessoais. Elas existem quando encarnadas por homens reais
numa situação de classe, e essa classe numa situação de luta. E isso se deveu a
uma briga entre Marx e Bakunin.
Na polêmica, Marx foi acusado de impor
um socialismo de cima, esquecendo um outro dado – que aliás aparece no texto da
Primeira Internacional e que foi escrito pelo próprio Marx, embora não apareça
seu nome –, que é o fato de que “a libertação dos trabalhadores deve ser obra
dos próprios trabalhadores”.
Por outro lado, a questão de que ele
era um defensor da teoria da vanguarda, do centralismo total, acho que mais se
aproxima de Lênin do que propriamente de Marx. Além disso, na Primeira
Internacional, Bakunin era a favor de um Estado pós-revolucionário, considerava
a Internacional como a vanguarda dos trabalhadores e fez uma proposta de
concentração do poder num comitê que dirigiria o trabalho físico obrigatório, a
tendência compulsória, dormitórios comunais e uma sociedade socializada.
No fundo, o que concluo pelo que li em
Bakunin é que sua herança é ambígua. Ela pode tanto ser interpretada no sentido
libertário como também tem muitos aspectos autoritários, muitos aspectos
negativos, no sentido do vanguardismo de alguns pós-marxistas.
Minha fala é no sentido de através da
prática e da teoria de Marx ver a contribuição dele para a luta dos
trabalhadores, basicamente em dois sentidos: na autonomia da luta dos
trabalhadores, como valor central, e, em segundo, na liberdade política, sem a
qual nenhum planejamento econômico pode inclusive ser discutido.
Há uma falsa associação entre os nomes
de Marx e Engels, porque de fato existem algumas defasagens entre os dois.
Enquanto Engels pregava uma dialética da natureza, a ideia do pensamento como
refluxo imediato do social, a preocupação de Marx era constituir-se numa
expressão teórica do movimento real da sociedade.
A maior preocupação de Marx era com a
compreensão do movimento que leva à autoemancipação do trabalhador e ela só
viria como fruto da sua autoatividade, entendida como a verdadeira ação de
classe. A intelectualidade poderia colaborar na educação política do
trabalhador, porém, não a substituindo no processo de auto-organização e ação.
A greve e o sindicato para Marx eram a
superação da expressão de concorrência que o capital estabelece entre a mão de
obra. Segundo ele, o proletariado, através da luta, adquire consciência da
submissão histórica.
Para Marx, tratava-se de libertar o
proletariado e a sociedade do domínio de duas ditaduras: a do dinheiro e a do
Estado. Ele considerava o Estado representativo moderno como uma escravidão
emancipada. Para ele, era fundamental a preservação da autonomia de ação da
classe operária.
Em seus escritos, desenvolveu o tema da
associação, visto como o instrumento que o trabalhador utilizaria no combate ao
Estado pela abolição do assalariado, pela reapropriação do saber e também pela
abolição da divisão capitalista do trabalho, que cria o idiotismo da profissão.
A associação constituía-se num processo
e num projeto revolucionários e a Comuna de Paris é o maior exemplo, segundo
Engels, do que é a ditadura do proletariado, porque era a mais audaciosa
negação do Estado, entendido como agente da classe dominante. Para ele, o
Estado situa-se no nível político à medida que condiciona a distribuição de
mais-valia entre os setores dominantes.
Quando estão a reboque de frentes
burguesas, os partidos que tomaram o poder em nome do proletariado, em vez de
instituir a predominância do social sobre o econômico, o que diferenciaria
qualitativamente o modo de produção capitalista do socialista, lutando pela
transição ao comunismo, não o fazem. Acabam com o capitalismo privado a
pretexto de uma fase de transição e reconstituem relações capitalistas de
produção sem o modo de produção capitalista, isto é, emancipam-se do
proletariado em vez de emancipá-lo, autonomizando-se como uma burocracia que
coletivamente o explora e redistribui a renda nacional conforme seus interesses
de casta.
Nas organizações horizontais, as massas
atingem sua maioridade através de várias fases. Por meio dessas associações, os
trabalhadores se apresentam; não se representam no sentido de um conjunto de
cargas, cuja nomeação seja feita de cima para baixo e que tenham imunidade em
relação aos seus iguais.
Elas são uma forma de Estado em
extinção e representam a implantação das relações de produção socialistas, que
se dão no mesmo processo. Unificando a esfera econômica à política, vinculando
o trabalhador aos meios de produção, elas criam novas relações sociais, pois a
manutenção da separação entre trabalhadores e meios de produção perpetua o
poder político.
O projeto socialista desqualifica-se
como tal na medida em que coloca entre o produtor e o processo de produção o
tecnocrata, que autonomiza-se a ponto de converter-se em um novo patrão
coletivo da classe operária, embora juridicamente a propriedade privada
inexista.
A inversão que implica a revolução
significa a abolição de intermediários no plano econômico, dos tecnocratas
administrativos que separam o produtor dos meios de produção e, no plano
político, a abolição do político profissional, com a integração da esfera
política à econômica, através da alta integração e organização operária de
conselhos, grupos, comissões de fábrica, comunas ou associações.
Os chamados partidos operários,
quaisquer que sejam suas diferenças menores, que se reclamam seguidores da
tradição de Marx, usam o nome operário para enquadrá-los nos aparelhos
partidários ou estatais de sua luta. Esses partidos tendem a cultivar o
socialismo em palavras e a reproduzir o capitalismo.
Seja na forma de pluralismo partidário
ou de partido único os partidos tendem a desenvolver uma nova forma de
realização do antigo modo de produção capitalista. Ressalto especialmente o
caso dos sindicatos sob o regime capitalista: mesmo aqueles que são eleitos em
oposição aos “pelegos” tendem inconscientemente a reproduzir práticas que eles
criticavam. Isso porque tanto o sindicalismo oficial como os partidos políticos
transformam os operários em ex-operários, daí a sua burocratização implacável e
inevitável.
Mas há exceções, mesmo no regime
capitalista. No campo sindical, temos a Central Sindical Boliviana (COB), a
Confederação do Trabalho na Espanha (CMT) e alguns sindicatos metalúrgicos de
cidades argentinas. Nesses sindicatos, o chamado dirigente sindical cumpre sua
jornada de trabalho diária como qualquer outro de sua categoria. Após
cumpri-la, dirige-se à sede sindical para ocupar o posto para o qual foi
eleito. Não há separação entre trabalho cotidiano e a função sindical.
Concluindo, através de Marx
compreendemos que a teoria não é receita a ser aplicada, mas ela tem validade à
medida que acompanha e explica o movimento real. Nesse movimento insere-se a
luta de classe, onde o operário cria instituições horizontais e é também o embrião
de um modo de produção socialista no seio do capitalismo. É através das
comissões de fábrica que se pode pensar um planejamento socialista e não
através do “planismo” estatal e burocrático de cima para baixo.
A função do intelectual não é dirigir,
enquadrar. É simplesmente, quando solicitado, assessorar e não querer dizer
para o trabalhador o que é melhor para ele e não se transformar em sacerdote do
Estado, porque Estado capitalista não se discute, mas também o Estado operário
é um termo que Marx nunca usou, porque é aquele aborto da sociedade a que se
referia ele falando da prática da associação feira pelo proletariado por
ocasião da Comuna de Paris.
[*] Originalmente publicado em Cadernos
Apropuc, São Paulo, 1983. O texto foi escrito para um debate com a
participação de Maurício Tragtenberg e Leandro Konder.
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