A Revolução Russa
Segundo Maurício Tragtenberg
Nildo Viana*
A Revolução Russa foi um dos
acontecimentos históricos mais importantes do século 20. Ela foi palco de
calorosos debates, análises, disputas, e acabou sendo fonte inspiradora de
lutas e ações políticas posteriores. A versão dominante da Revolução Russa foi
amplamente divulgada, sendo que a versão dos vencidos foi relegada à
marginalidade. No Brasil não foi diferente. Aqueles que discutiram a Revolução
Russa reproduziram a versão oficial da historiografia e deixaram de lado as
ricas experiências proletárias e camponesas, o significado histórico
fundamental e revolucionário dos sovietes (conselhos operários), a esquerda
dissidente e suas críticas ao regime bolchevique estabelecido. Uma rara exceção
existiu no seio da intelectualidade brasileira e foi representada por Maurício
Tragtenberg, que fez reemergir a perspectiva do proletariado no que se refere
ao marxismo e às lutas heróicas do proletariado. Assim, as duas reedições da
obra de Tragtenberg, A Revolução Russa[1], é antes de tudo uma
necessidade, mas também é uma brecha para que a verdade sobre este acontecimento
histórico reapareça.
Compreender a obra significa
compreender o autor. Da mesma forma, compreender o autor significa compreender
a obra. Maurício Tragtenberg foi um dos mais importantes sociólogos brasileiros
e exerceu influência sobre inúmeros intelectuais, amigos, alunos. O sentido da
vida e obra de Tragtenberg foi, a nosso ver, a luta pela autogestão, e não,
como alguns podem pensar, “uma vida para as ciências humanas”. Tragtenberg
nasceu em Erexim, Rio Grande do Sul, no dia 4 de novembro de 1929. Morou algum
tempo em Porto Alegre e posteriormente mudou para São Paulo. Freqüentou o
Centro de Cultura Democrático, movimentos de jovens judeus, Partido Comunista
Brasileiro, Biblioteca Municipal de São Paulo, família Abramo, Partido
Socialista Brasileiro e Centro de Cultura Social, de orientação anarquista.
Desde os 10 anos lia Rosa Luxemburgo, Trotsky e vários outros, pois tinha
acesso a uma ampla bibliografia, cuja origem era o acervo de familiares,
bibliotecas, partidos, etc. Manteve contato com intelectuais como Antônio
Cândido, Azis Simão, entre vários outros. Aliás, foi Antônio Cândido que lhe
informa da possibilidade para entrar na USP através da proposta de uma
monografia, desde que essa fosse aceita. A monografia, depois publicada como
livro (Planificação: Desafio do Século 20),
foi aprovada e assim ele passou a fazer parte da esfera acadêmica. Na esfera
acadêmica, produziu várias obras, com destaque para sua tese Burocracia e Ideologia, além de diversos
livros, bem como prefácios de outras obras, organização de livros e artigos
para revistas e jornais. Chegou a ser colunista do jornal Notícias Populares,
visando atingir um público composto por trabalhadores.
Alguns temas foram recorrentes e
fundamentais em sua produção, tais como a questão da burocracia, a obra de
pensadores como Marx, Weber e Bakunin, a autogestão social, as lutas operárias,
a autonomia e auto-organização do proletariado e campesinato, autores
“marginais” ou “malditos” como Rosa Luxemburgo, Makhaïsky, Korsch, Bordiga,
Pannekoek, Gorter, etc.
A preocupação de Maurício
Tragtenberg com a burocracia se manifesta em sua primeira obra, a
monografia-livro Planificação: Desafio do
Século 20, no qual aborda a questão da burocracia, iniciando com uma
discussão sobre alienação, natureza humana e classes sociais, para encerrar com
uma análise do bolchevismo, da burocratização da Rússia e do capitalismo de
Estado. Ele encerra apresentando a alienação como sendo provocada pela divisão
social do trabalho e que a reintegração do homem na humanidade e sua essência
só pode ocorrer através do socialismo, que realizaria a emancipação humana. Sua
obra Burocracia e Ideologia, oferece
uma análise da formação e características das teorias gerais da administração,
abarcando um amplo espectro histórico (do modo de produção asiático ao
capitalismo) e ideológico (de Saint-Simon a Max Weber). As teorias gerais da
administração são consideradas por ele como ideologias, formas de falsa
consciência, representando os interesses das classes dominantes, que são
operacionais no nível técnico e que mudam de acordo com a mudança nos processos
econômicos e sociais. O tema da burocracia é retomado em Administração, Poder e Ideologia, que aborda o problema das grandes
corporações e questões como a co-gestão, o participacionismo e outras formas
que as grandes empresas utilizam para enquadrar e integrar os trabalhadores. A
crítica da burocracia continua em Sobre
Educação, Política e Sindicalismo, mas desta vez focalizando a burocracia
escolar e universitária.
Outro tema fundamental na obra
de Tragtenberg é o da educação libertária e da autogestão das lutas operárias. A
educação está presa nas malhas da burocracia, mas é um processo contraditório,
havendo brechas e possibilidades, lutas que são definidoras da produção,
apropriação e expropriação do saber. Daí a presença em sua obra do tema da “pedagogia
libertária” ou “autogestão pedagógica”. Por isso ele analisava os educadores
libertários (Francisco Ferrer), e as experiências históricas (a autogestão
pedagógica na Espanha). Isto estaria ligado ao processo de constituição de uma
nova sociedade e, retomando Marx, entendia que tal processo seria resultado da
luta da classe operária, de sua auto-educação e auto-organização. Segundo Tragtenberg,
em Reflexões sobre o Socialismo, apesar
da tendência à burocratização, a classe trabalhadora nega este processo criando
organizações horizontais, igualitárias, novas relações sociais. A chave para
entender a formação de uma nova sociedade está no desenvolvimento destas formas
de auto-organização do proletariado. No seu processo de luta, de
auto-organização e associação (comissões de fábrica, comitês de greve,
conselhos operários), se encontra o embrião da futura sociedade autogerida. É
aí que se encontra a razão de sua crítica aos partidos e sindicatos, bem como
sua oposição ao capitalismo de Estado (“socialismo real”).
É neste contexto da produção
teórica de Tragtenberg que podemos compreender melhor o seu livro sobre a
Revolução Russa. Tragtenberg analisa a pré-história da Revolução, analisando a
Rússia Imperial, a evolução do czarismo, as rebeliões camponesas, a igreja.
Depois analisa a sociedade russa pré-revolucionária, no qual apresenta um
panorama das classes sociais existentes neste período, os debates entre as
tendências políticas, e a Revolução de 1905 e o papel dos partidos políticos. O
processo da Revolução Russa é a parte seguinte, na qual aborda a revolução
camponesa na Ucrânia, a instauração do regime bolchevique, a revolta de
Kronstadt, a questão sindical e a Oposição Operária de Alexandra Kollontai, os
Sovietes e seu esvaziamento pelos bolcheviques, e diversas questões postas no
processo de luta de classes na Rússia deste período (ditadura do proletariado,
questão nacional e colonial, assembléia constituinte).
É neste contexto que ele
apresenta, na parte final, a discussão sobre o partido político. Ele questiona
o centralismo democrático e aponta suas conseqüências. Segundo Tragtenberg, “as
revoluções que procuram mudar as relações de propriedade e não somente as
pessoas que governam, instaurando um novo
modo de produção, não são feitas por partidos, grupos ou quadros, mas
resultam das contradições sociais que mobilizam amplos setores da sociedade”. O
papel do Partido Bolchevique foi promover uma contra-revolução. O partido passa
a ser um estado burguês em miniatura e defender o liderismo e centralismo. O
partido reproduz a mentalidade burocrática e cria ideologias para se justificar
e legitimar, isto, tal como a ideologia leninista da nulidade operária. O
partido assume o poder estatal e toma conta da sociedade, realizando uma
aliança entre a burguesia de Estado e a tecnocracia, o que promove a
implantação do capitalismo de Estado. O substitucionismo apontado por Trotsky
em seu período de juventude e em polêmica com Lênin (O partido substitui a
classe; o comitê central substitui o partido; um ditador único substitui o
comitê central) se realiza na realidade concreta. O bolchevismo já era
ideologicamente o que se tornou praticamente a nível nacional, ou seja, foi o
promotor do capitalismo estatal. As ideologias e ações do Partido Bolchevique
confirmam a tese do substitucionismo: as teses defendidas por Lênin (gestão
individual das empresas) e Trotsky (a militarização dos sindicatos) e a prática
efetuada por ambos (massacre na Ucrânia e em Kronstadt) são manifestações
concretas de algo que já estava em germe, em alguns casos, ou já estavam
desenvolvidas, mas sem aplicação prática.
Assim, Tragtenberg faz uma
revisita ao processo histórico da revolução russa partindo da perspectiva do
proletariado. Neste sentido, esta obra de Tragtenberg (mas não só esta) mostra
como a perspectiva do proletariado está presente na análise histórica e na
reconstituição histórica. Trata-se de uma questão discutida na historiografia,
mas sob a forma relativista e geralmente com tendência individualista. A
reconstituição de um fenômeno histórico é realizada tendo por base as
informações existentes sobre ele, as ferramentas intelectuais e analíticas de
quem a faz, os valores, sentimentos, concepções e interesses do mesmo, que
estão na base da escolha e formação destas ferramentas intelectuais.
A concepção cientificista
segundo a qual bastaria ter um instrumental metodológico e/ou uma abordagem
supostamente teórico-sistemática para dar conta da reconstituição do fenômeno
histórico é ilusória e nada tem de inocente. Esta concepção revela uma
perspectiva de classe, que está na sua base e também dos “métodos” e “teorias”
apresentados como a solução mágica para chegar ao “conhecimento científico”,
sendo, na verdade, construções ideológicas, metafísicas e reificadas. O seu
oposto, o relativismo, já abandona a pretensão da verdade e se refugia em
outras ideologias metafísicas e imprecisas, fazendo do descompromisso ou do
compromisso duvidoso a sua máxima e seu guia. Assim consegue disfarçar a
perspectiva de classe que está na sua base.
Na obra de Tragtenberg, nenhuma
destas alternativas se encontra presente. A história da Revolução Russa é
apresentada em seu processo social de constituição, perpassado pela luta de
classes, pelos desdobramentos destas lutas, pelas formas organizativas,
intelectuais e ideológicas que assume, num processo analítico que não apenas mostra
as forças em luta, mas suas debilidades e, principalmente, como o discurso
dominante, burocrático-bolchevista, é ideológico, uma falsa consciência
sistemática da realidade, e, ao mesmo tempo, eficaz, mobilizador e legitimador
da exploração do proletariado pela burocracia metamorfoseada em burguesia de
Estado.
Isto é perceptível, por exemplo,
na análise que ele faz do economista Preobrajenski. Este ideólogo bolchevique
irá escrever a obra “A Nova Ciência da
Economia”, na qual discute as leis gerais do capitalismo e do socialismo.
Ele produz a tese da “acumulação socialista primitiva”, na qual existiria, tal
como na época de surgimento do capitalismo existiu a “acumulação primitiva de
capital”, a pilhagem. Tragtenberg coloca que, para Preobrajenski, “a acumulação
socialista aparece de duas formas: pela redução do salário dos operários e
funcionários do Estado ou à custa das rendas dos pequeno-burgueses e
capitalistas. Pelo controle dos impostos, o setor socialista poderá
apropriar-se da mais-valia do setor privado”.
Isto tem como conseqüência o
reforço do setor socialista da economia e do aparato partidário. Os setores que
seriam pilhados seriam, fundamentalmente, os do setor privado, que, naquele
momento, eram os camponeses e outros setores (dependendo do momento histórico).
A tese, já presente em Engels e Lênin, da “segunda luta”, agora entre
proletários e camponeses, é retomada e serve como justificativa e legitimação
da superexploração do campesinato.
A questão da perspectiva de
classe aparece neste exato momento. Em primeiro lugar, o paralelo entre
revolução burguesa e proletária expressa uma perspectiva de classe por parte de
Preobrajenski. Suas teses apontam para confundir revolução burguesa e revolução
proletária, propriedade estatal com “setor socialista”, acumulação primitiva de
capital com produção de excedente no socialismo, etc. Ora, a confusão, ou seja,
a fusão de duas coisas radicalmente diferentes é apenas a manifestação de uma
perspectiva de classe, burocrática, no qual um dos dois elementos é destruído e
permanece apenas na linguagem. O socialismo com exploração, mais-valia,
acumulação, pilhagem, aparato burocrático centralizado, partido centralizado e
gestor, não é nada mais do que o capitalismo estatizado na prática que aparece
como sendo o seu contrário. Essa magia das palavras, porém, não é perceptível
imediatamente por alguém que não parte da perspectiva do proletariado e é aqui
que reside o problema da reconstituição histórica e perspectiva de classe. Para
alguém ler Preobrajenski e perceber a confusão e seu significado, seria preciso
possuir valores, sentimentos e concepções antagônicos aos dele. Uma leitura
“neutra”, “objetiva”, fundada em determinados métodos e concepções, realizada
por portadores de determinados valores e sentimentos, não ultrapassaria o
“dado”, ou seja, o discurso de Preobrajenski, o que significaria acreditar nele
e tomar seu discurso em favor de um capitalismo estatal como discurso em favor
do socialismo.
Este não foi o caso de
Tragtenberg, que percebeu o caráter da obra de Preobrajenski e não só dele, mas
também de Lênin, Trotsky, Stálin e vários outros, revelando os interesses de
classe por detrás da legitimação do capitalismo estatal. Assim, a obra de
Tragtenberg tem como mérito partir da perspectiva do proletariado e ao fazer
isso revelar que por detrás das produções intelectuais existe uma camada
profunda, e, para muitos, invisível, que é determinante no seu processo de
produção.
Também é este elemento que
permite ao pesquisador reconhecer o valor e significado das iniciativas
proletárias e camponesas, tal como Tragtenberg faz quando analisa o caso da
Ucrânia, de Kronstadt e dos Sovietes. Os acontecimentos históricos ganham
visibilidade ao estarem envolvidos em um processo que é o da auto-emancipação
do proletariado e de outros grupos explorados ou oprimidos e, assim, a vida e a
morte não são apenas possibilidades abstratas ou fatos registrados, e sim
manifestação de seres vivos, idéias, valores e sentimentos. O mesmo vale para
as obras culturais, os livros não são vistos apenas como coisas materiais com
textos escritos, mas como portadores de projetos, interesses, valores,
sentimentos, concepções. Os livros são manifestações de seres humanos e se o
livro é vazio, isto se deve ao vazio de quem o escreveu.
Enfim, Maurício Tragtenberg vai
além da historiografia oficial e da história dos vencedores, por compartilhar
com o proletariado a mesma perspectiva. A sua obra sobre a Revolução Russa,
embora introdutória e resumida, reconta e faz reviver a história de uma sociedade
que esteve à beira da transformação social e que perdeu a oportunidade, devido à
derrota dos explorados diante dos seus “representantes”. Também apresenta uma
lição metodológica, a de que o método não é algo reificado e fora das relações
sociais, separado de quem o escolhe, produz e/ou usa. Desta forma, Tragtenberg
recuperou a consciência teórica da Revolução Russa e fez avançar a consciência
da história.
Artigo publicado originalmente em:
História Revista (UFG), v. 13, p. 281-286, 2008
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