Maurício Tragtenberg
O que se viu até aqui dá uma ideia do papel da instituição
partido político nos movimento sociais, mostrando a ambiguidade de sua atuação
estímulo/controle desses movimentos e a criação do intermediário entre classe e
Estado, o político profissional.
Teoricamente, os militantes de um partido devem conhecer as
propostas programáticas das diferentes linhas internas, escolhendo a que está
mais conforme a sua maneira de pensar. A cúpula de um partido representa os
filiados.
Na prática, o líder partidário ordena e responde aos
interesses do grupo dirigente minoritário e não aos da base. Como profissional
do partido, o líder preocupa-se mais com seu trabalho do que com suas
promessas. O fato de ser dirigente leva-o a afastar-se da vida quotidiana da maioria
das pessoas, o que o torna “diferente”. Torna-se geralmente conservador,
levando uma vida privada e desenvolvendo interesses da minoria dirigente. Esses
líderes partidários, isolados nos escritórios, são facilmente corruptíveis
pelos interesses das classes dominantes.
A maioria dos filiados a um partido não lhe conhece os
programas, deixa-se levar por slogans ou palavras de ordem, promessas e carisma
dos candidatos. Os programas e promessas são imprecisos e indefinidos,
permitindo aos dirigentes ampla gama de manobras.
O compromisso dos partidos com a classe que detém o poder
condiciona sua linha política. Pode acontecer até que um industrial apoiar um
partido proletário, porém ele irá querer influir em sua linha política. Os
militantes são convocados para atos públicos ou eleições.
Os partidos são dirigidos por castas, intelectuais e
políticos profissionais. Não são democráticos, porque neles domina uma minoria
dirigente com interesses específicos.
Numa democracia política, o programa de cada partido somente
é conhecido por uma minoria; a grande maioria só conhece slogans, palavras de
ordem e promessas ambíguas. Numa democracia parlamentar, a decisão é tomada por
uma minoria, que, assim sendo, se corrompe e decide em seu próprio benefício.
A profunda incompatibilidade dos partidos da esquerda
tradicional, sejam comunistas, socialistas ou intitulem-se partido dos
trabalhadores, consiste em que o partido tende a ser o instrumento privilegiado
de coordenação da revolução social. Fundamentalmente é um Estado em miniatura,
com um aparelho e quadros cuja função é tomar o poder e não destruí-lo.
Consolidada a revolução, o partido assimila todas as formas
técnicas e a mentalidade da burocracia. Seus membros aprendem a obedecer e a
reverenciar um liderismo, ou “função dirigente do partido”, baseado em
seculares costumes gerados pelo mando, autoridade, manipulação e hegemonia.
Quando participa de eleições, o partido é obrigado a assumir a forma eleitoral.
E a situação se complica quanto mais ele aumenta seu aparelho com uma rede de
jornais, rádio, tevê, jornalistas, intelectuais oficiais e funcionários
administrativos. Quanto mais cresce em número, maior é a distância entre a base
e a direção. O líder converte-se em “personagem”.
No partido, fatores de status
social e político e posições burocráticas alcançadas tornam-se mais
importantes que a dedicação desinteressada à revolução social.
O partido é eficiente no moldar a sociedade à sua imagem
hierárquica; cria a burocracia, a centralização e o Estado. Em vez de provocar
o desaparecimento progressivo do Estado, o partido cria todas as condições para
a existência daquele e de um partido para mantê-lo.
Se é certo dizer que nas revoluções burguesas “a fraseologia
substitui o conteúdo”, no bolchevismo as formas substituem o conteúdo. Os
sovietes substituem os trabalhadores e seus comitês de fábrica, o Partido
substitui os sovietes, o Comitê Central substitui o Partido e o
secretário-geral substitui o Comitê Central.
Karl Kautsky, teórico da II Internacional, defende o ponto
de vista de que a consciência política do proletariado é introduzida de fora,
negando um dos fundamentos da teoria marxista de que é a existência que
determina a consciência social. Assim escreve Kautsky: “É totalmente falso que
a consciência socialista seja o resultado necessário, direto, da luta de
classes do proletariado. O socialismo e a luta de classes não são criados
contemporaneamente e surgem de premissas diferentes. A consciência socialista
nasce da ciência; o portador da ciência não é o operário e sim o intelectual
burguês. Este é que comunica ao proletariado o socialismo científico” (K.
Kautsky, Neue Zeit, 1901-02, v. XX, p. 79-80).
Essa é a visão que Lênin adota em sua obra Que Fazer?, onde
define sua concepção de partido, achando ser o baixo nível cultural dos
trabalhadores que os faz chegarem ao poder por intermédio de uma vanguarda.
Lênin nega, assim, as possibilidades práticas do socialismo.
É por isso que, após a morte do líder, os leninistas,
hipnotizados pela Revolução Russa, não viam que a mudança para o socialismo não
começa simplesmente com a tomada do poder pelo PC. Segundo eles, somente quando
o PC detém com exclusividade o poder é que os trabalhadores começam a exercer a
“ditadura do proletariado” e o socialismo passa à ordem do dia. Com isso
desvalorizam o esforço dos trabalhadores na área cultural, social ou econômica.
A luta anterior da classe operária ; ria para organizar-se de nada conta, pois,
segundo os leninistas, o proletariado é incapaz de chegar ao poder e
estabelecer seu regime a não ser delegando poderes à sua “vanguarda consciente
e organizada”, o PC.
As vanguardas, se existem, constituem meros grupos de
propaganda ideológica. Sob Lênin, o PC lutava por ideias e princípios. Sob
Stálin, as ideias transformaram-se em dogmas. Aí então o PC transformou-se num
partido “predestinado” a realizar o socialismo, sendo visceralmente hostil a
qualquer outra organização operária que se interpusesse entre ele e os
trabalhadores. Pode pregar a unidade apenas para absorver outras organizações que
o operariado crie no seu processo de luta, aproveitando delas os melhores
militantes e liquidando-as implacavelmente.
A concepção, leninista de partido enquanto minoria
organizada que deva dirigir uma maioria informe, o proletariado, leva o
trabalhador a regredir em seu nível de consciência social e política. O
trabalhador é deseducado pelo oportunismo do partido, pelo seu desprezo as ideias,
e submetido a um processo que o torna incapaz de uma ação autônoma e coletiva.
A classe operária perde a confiança na sua própria capacidade de luta,
organização e compreensão do processo social, transferindo-a ao partido.
Essa sacralização do partido caminha paralela à ideologia da
nulidade operária. Um partido, por mais comunista que se proclame, sem um alto
grau de organização do trabalhador em sindicatos, cooperativas, não passará de
um instrumento para conseguir seus próprios objetivos imediatos, nem sempre
coincidentes com o que pretendem os operários.
Para o trabalhador, o socialismo pode ser o coroamento de suas
lutas quotidianas contra o capital; para o PC, imbuído de uma ideologia e de
um, messianismo próprio, o socialismo é sua conquista do poder, independente do
grau de amadurecimento do proletariado. O caráter proletário para o PC é dado
por uma teoria e não pela realidade social.
A destruição da Oposição Operária na URSS, a repressão à
Rebelião de Kronstadt e à revolução camponesa de Makhno e a substituição da
direção coletiva da fábrica pela direção unipessoal mostram como a Revolução
Russa foi destruída por forças internas e não pela invasão estrangeira.
É importante notar - como faz J. Bernardo, em carta de
13-6-82 que “as formas de organização do movimento operário são seu próprio
conteúdo. É porque não veem essas formas enquanto conteúdo o caráter imediatamente
ideológico que elas tomam (auto-organização, autogestão das lutas) - a
perspectiva comunista que está implícita e inelutavelmente contida nessas
formas - refiro-me às formas de luta autônoma - é porque não veem nada disso
que esses teóricos (leninistas) são cegos quanto às lições a tirar do movimento
operário”.
No sistema capitalista, a fábrica adota o despotismo
administrativo e, como reação, desenvolvem-se nela relações sociais propícias
ao comunismo. E acontece que essas relações extravasam os limites fabris.
Assim, a internacionalização do capitalismo permite emergirem formas de luta
proletárias que, no seu processo de, desenvolvimento, criam as condições
mínimas ao comunismo. E o proletariado, definindo-se como classe internacional,
na Polônia, Brasil, Portugal ou Bolívia, tende a desenvolver formas idênticas
de luta.
De qualquer forma, as cisões no Leste Europeu - o caminho
independente da Iugoslávia, as veleidades de independência da Romênia, o
isolamento da Albânia e as revoluções da Hungria, Tchecoslováquia e da Polônia
- deixam bem claro a desintegração do bloco comunista tradicional.
No mundo capitalista, a revolução na Nicarágua (1979), a
Revolução Cubana, a impossibilidade de os EUA terminarem pela força a
contestação em El Salvador e a crise do Oriente Médio mostram que tudo caminha
no mesmo sentido, embora relações bilaterais (URSS-Argentina ou EUA-Hungria)
mostrem níveis de integração do capitalismo mundial nesse processo
contraditório.
O movimento operário no seu processo de luta tende a criar
organizações igualitárias, horizontais, destruindo hierarquias estabelecidas
pelo Estado, o técnico como intermediário, na empresa, entre o trabalhador e a
administração e o político como o intermediário entre a classe o conjunto da
sociedade. É o que Rosa Luxemburgo definia: A tendência dominante que
caracteriza a marcha do movimento socialista na atualidade e no futuro é a
abolição dos dirigentes e da massa dirigida” (Rosa Luxemburgo, Marxisme contre
dictature, Paris, Spartacus, p. 36-7).
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Capítulo de:
TRAGTENBERG,
Maurício. Reflexões Sobre o Socialismo.
Rio de Janeiro: Moderna, 1988.
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