domingo, 29 de setembro de 2019

Rússia atual: produto da herança bizantina e do espírito técnico norte-americano



Rússia atual: produto da herança bizantina e do espírito técnico norte-americano*

Present Russia: product of byzantine heritage and of the north-american technical spirit


Maurício Tragtenberg



RESUMO
Este artigo desenvolve uma análise da Revolução Russa de 1917, a partir do exame de seu processo histórico de longa duração, no qual a implantação do cristianismo bizantino foi fundamental. O autor recorre à metáfora geológica da pseudo-morfose para explicar esse processo histórico e a ascensão do bolchevismo em 1917 e para estabelecer uma analogia entre os dois centros mundiais do poder durante parte do século XX.
Palavras-chave: Pseudo-morfose. Revolução Russa. Tecnicismo. Cristianismos. Norte-Americano.

ABSTRACT
This paper analyzes the 1917 Russian Revolution, by examining its long-lasting historical process, in which the adoption of Byzantine Christianity played a key role. The author resorts to the geological metaphor of pseudomorphosis to explain this historical process, the rise of Bolshevism in 1917, and to establish an analogy between the two worldwide centers of power during part of 20th century.
Key words: Pseudomorphosis. Russian Revolution. Technicism. Christianities. North-American.



Parte I (Folha Socialista, 5 abr. 1954, p. 6)
Corresponde a uma exigência do conhecimento político atual a análise das forças que determinam a tensão mundial - Rússia e EEUU - como ponto de partida para uma visão objetiva dos problemas equacionados pela realidade.
Pomos de lado calmamente todos os slogans comunistas ou americanos na propaganda política, seja a defesa da pátria socialista ou a da civilização ocidental, e recorremos à única ciência, a História (Marx), para dela tirarmos os elementos que nos capacitarão a uma visão justa dos problemas do mundo moderno, dividido entre o imperialismo russo e o norte-americano, tendo como incógnitas a Alemanha e os movimentos coloniais.
Aprendemos com Marx a analisar um regime não pelo seu aspecto formal, lei escrita, assim como no caso dos regimes democráticos, que são liberais e humanistas no papel e na realidade praticam a violência na vida social, seja o linchamento de negros, repressão pesada às greves ou a política colonial, que em nada honra nossa civilização ocidental. E, por outro lado, correspondia a uma finalidade humana o regime instaurado nas zonas de dominação anarco-sindicalista na guerra civil da Espanha, embora ele abertamente recorresse à violência contra os fascistas, pois a violência ali estava a serviço da libertação do homem, enquanto a violência não admitida em lei, mas existente em regimes democráticos, está a serviço das forças que alienam o homem, na exploração de seu trabalho (burguesia), de sua liberdade (Estado) e de sua ideologia (religião).
Assim, a análise dos elementos constitutivos desse mundo chamado Rússia Soviética implica numa volta à história antiga e no seu entrelaçamento com a idade moderna russa - a Revolução Russa ou o bolchevismo.

Pseudo-morfose
Numa rocha estão encravados cristais de um mineral. Produzem-se aberturas. Cai água que vai lavando os cristais de tal forma que só ficam suas cavidades; mais tarde, sobrevêm fenômenos vulcânicos que rompem a montanha, massas incandescentes se precipitam ao seu interior, se solidificam, cristalizando-se por sua vez, mas não em sua forma própria, têm que preencher as formas que aquelas cavidades lhes oferecem, assim resultam formas híbridas, cristais cuja estrutura interior difere da construção externa, espécies minerais que tomam formas alheias: os mineralogistas chamam isso de pseudo-morfose (pseudo-forma).
As pseudo-morfoses históricas dão-se quando uma cultura estranha cai sobre outra com tanta força que a cultura jovem não consegue respirar livremente, não chegando a constituir-se nas suas formas expressivas e peculiares, com consciência de seu papel histórico; nesse sentido, deu-se a conquista Aria nas índias, a do imperialismo assírio Tiglath-Pilesher1 sobre Israel, ou de Cortez no Peru; esmagaram as culturas existentes impedindo sua tomada de consciência, que se deu nas formas híbridas estabelecidas pela estrutura de dominação dos conquistadores (constituição de um Estado dos dominadores sobre os subjugados, ou uma burocracia de funcionários composta dos subjugados, mas controlada pelos vencedores com o fim fiscal etc. etc.). Existem ainda pseudo-morfoses ideológicas, que se dão quando uma ideologia ou religião formada dentro de uma constelação cultural determinada é levada para as formas desse mundo novo: é esse, por exemplo, o caso do cristianismo, tipo ideal da pseudo-morfose ideológica.
A pseudo-morfose no cristianismo manifesta-se expressivamente no mito do nascimento de Jesus. Sobre isso, em torno do qual seus discípulos nada sabem, formou-se uma lenda infantil. Ela tem suas raízes nos Apocalipses dos Antigos Persas e no Saoshyant, onde o Salvador dos últimos dias deveria nascer de uma virgem, isso nos marcos do cristianismo oriental. Mas para o cristianismo em sua fase de ocidentalização, isso significou coisa bem diferente. Assim, no Ocidente, junto a Jesus filho e muito acima dele, aparece a figura da Mãe de Deus, a Deusa-Mãe sobrepujando as Virgens-Mães do sincretismo: Isis, Cibele e Deméter. Mas Maria, a engendradora, a Mãe de Deus, constitui um grande escândalo para os cristãos orientais, ainda parece-nos hoje ouvir as vozes dos monofisistas clamarem nas ruas de Éfeso contra isso. E as proposições dogmáticas advindas do culto à Virgem Maria determinaram, em última análise, a ocasião para que os monofisistas e os nestorianos2 se separassem da Igreja ocidental, estabelecendo uma pura religião de Jesus. Quando o Ocidente desperta, sentindo necessidade de um símbolo que exprimisse seu sentimento íntimo da história, do tempo infinito, teve que colocar no centro do cristianismo germano-gótico-católico a MATER DOLOROSA e não o SALVADOR DOENTE. Ainda hoje, na Igreja Católica, Jesus ocupa o segundo lugar após a Madona.
Assim, a denominação de Messias (Christus) é judia; e Salvador e Senhor vêm da religião oriental aramaica. Na ocidentalização do cristianismo - pseudo-morfose - Christus se converte no nome de Salvador, no título de Jesus. Mas Senhor e Salvador já eram os títulos do culto helenístico ao Imperador. Esse é o sentido do processo de pseudo-morfose do cristianismo na sua ocidentalização. Assim, não existe cristianismo, mas cristianismos: o cristianismo primitivo oriental, o cristianismo da pseudo-morfose de Constantino o Grande, o cristianismo gótico e o cristianismo tipicamente ocidental, ativo, corporificado na Milícia Christi de Santo Inácio de Loyola.
Assim, o bolchevismo também é um produto de pseudo-morfose: a tradição bizantina e o espírito técnico americano constituem a estrutura íntima do Estado russo atual. A diferença primitiva entre a Rússia e o Ocidente mostra-se quando penetramos nas lendas das bilinas, que chegam ao auge no quadro das lendas de Kiev, do príncipe Wladimir e sua Távola Redonda e o herói popular Ylia de Morum.3 A diferença entre a Rússia e o Ocidente mostra-se nesses cantares, que correspondem ao Rei Arthur e aos Nibelungos.
Durante quase mil anos, a Rússia não pertenceu à civilização ocidental, senão, à civilização bizantina. Uma sociedade diferente, como a ocidental, da greco-romana, mas, por seu turno, com aspectos distintos. Os russos adotaram o cristianismo ortodoxo oriental bizantino nos fins do século X e depois da captura de Constantinopla pelos turcos em 1453 e a extinção do último vestígio do Império Romano do Oriente, o principado de Moscou, que se havia convertido no centro do reagrupamento da cristandade ortodoxa russa contra os muçulmanos e latinos, tomou dos gregos a herança bizantina. Em 1547, Ivan, o Terrível, coroou-se Tzar, o Imperador Romano do Oriente. Desde 1453, a Rússia foi o único país cristão ortodoxo de importância que não havia caído sob o domínio muçulmano; a captura de Constantinopla pelos turcos foi vingada por Ivan, o Terrível, quando, um século depois, arrancou Kazan das mãos dos tártaros. Era esse mais um passo na captação da herança bizantina pela Rússia. Essa política revela-se numa carta dirigida ao grão-duque Basílio III de Moscou pelo Monge Teófilo de Poskov: "A Igreja da velha Roma caiu por causa de sua heresia, as portas da Segunda Roma foram destruídas pelos turcos e infiéis; mas a Igreja de Moscou, a igreja da Nova Roma brilha mais resplandecente de que o sol em todo o universo: duas Romas caíram, mas a terceira se mantém firme, e não pode haver uma quarta". Sob a foice e o martelo, como sob a cruz, a Rússia é a "Santa Rússia" e Moscou é a Terceira Roma. Nesse sentido, opera a política do governo russo ao conferir liberdade ao clero russo - durante a Segunda Guerra - controlada pelo poder secular. Tal como no Estado bizantino, a Igreja pode ser cristã ou marxista, contanto que aceite ser instrumento do poder secular. Daí a razão dos discursos patrióticos do patriarca Sérgio, conclamando o povo a defender a "Santa Rússia", a causa "sagrada", contra o Invasor. O primeiro aspecto da tradição bizantina que permanece na Rússia atual é o papel influente da Igreja Ortodoxa sob o controle estatal. O segundo é a herança do Estado totalitário dirigido por um chefe carismático. O Estado totalitário bizantino da Idade Média ressuscita em Constantinopla o Império Romano. As contribuições mais sérias da civilização atualizam-se aí, onde não chega o poder do Estado Romano do Oriente, como o provam a construção da "Magna Grécia" na Calábria, com os cristãos gregos refugiados, ou o aparecimento do gênio cretense do século XV, Theotocopoulos, que admiramos sob o nome de EL GRECO. Os russos acreditavam que só poderiam sobreviver concentrando poder político na forma de Estado, este sim uma versão do Estado bizantino. O Grão Ducado de Moscou foi o laboratório para essa experiência política e o serviço prestado por Moscou - e sua recompensa - foi a consolidação, sob sua direção, de uma união de débeis principados numa potência unificada. Esse edifício estatal totalitário moscovita teve sua fachada mudada duas vezes - sob Pedro, O Grande, e sob Lenine, mas a essência de sua estrutura conservou-se inalterada e a União Soviética de hoje, como o Grão Ducado de Moscou do século XIV, reproduz os traços mais salientes do Império Romano do Oriente Medieval.

Parte II (Folha Socialista, 1º de junho de 1954, p. 2)
O segundo aspecto que caracteriza o bolchevismo como produto de uma pseudo-morfose, além da herança bizantina, é a captação da técnica ocidental, mais precisamente, do espírito técnico norte-americano. É assim que Chicago é cantada em verso por Maiacowsky:4
Cidade
Erguida sobre um parafuso!
Cidade! Eletro-dinamo-mecânica, cidade!
Espiralóide
Sobre um gigantesco disco de bom aço
Agirá sobre si mesmo
Com cada martelada das horas
5000 arranha-céus
Sóis de granito
As praças:
A quilômetros de altura nos céus galopam
Formigantes de milhões de criaturas
Broadways suspensas
Em cacho de aço tramadas
Na ponta dos postes
Coloca-se crepitando a luz elétrica
Cartazes de fumaça pelos ares
Inscrições fosforescentes
(Em: Espírito e Fisionomia do Bolchevismo, de René P. Miller, ed. Globo, p. 37-38).
Não só Chicago é alvo de entusiásticos cantos, como o ritmo de vida americana aparece como protótipo digno de imitação: - "Tomemos a torrente da revolução na Rússia Soviética. Sincronizemo-la com o ritmo do pulso da vida americana e executemos o nosso trabalho como um cronômetro" (Apelo de Gastieff para a mecanização) - obra citada, página 38.
A pseudo-morfose, 'a torrente da revolução' sincronizada com o ritmo do pulso da vida americana predispõe à formação de um tipo humano com essas características. É o que se deu.
Sosnovsky, o "literato da corte bolchevique", já nos primeiros anos da Revolução, fizera a proposta que se educassem os russos como se fossem americanos: "trata-se antes de mais nada [escreveu ele] de procurar encontrar novos homens que nós chamaremos russos-americanos e cabe ao Partido e ao Soviets dar ajuda no sentido de que esses homens sejam colocados no devido lugar e cuidar de que os patetas não os boicotem logo nos primeiros passos. Apenas durante os primeiros passos, pois no curso futuro de sua atividade esses 'americanos' já saberão se defender por si mesmos e liquidar os patetas. Os nossos 'americanos' devem ser postos sob a proteção do povo inteiro, é necessário que se os moldem em uma corte e que se obrigue todos os outros que sigam a direção deles". No ano de 1923 o novo Partido exige a organização dos "russos-americanos" para os quais não se exige de maneira alguma a estadia na América do Norte, que declarará guerra sem quartel aos batalhões russos. "Infelizmente nas minhas veias circula pouco sangue americano, mas sinto com todo o meu ser a aproximação dessa nova raça de homens e ponho a minha pena a serviço dela". Assim, a Revolução Russa não significa somente a apropriação da técnica ocidental mas do espírito dela, como foi forjado nos Estados Unidos. Tanto Rússia como EEUU não tiveram humanismo nem renascimento, logicamente o conjunto de fatores, as "coincidências culturais" (Marx) que se deram na Europa com o humanismo e o renascimento determinaram a formação de valores básicos na forma de vida dos europeus que não se deram no caso da Rússia e EEUU, onde vive-se para a produção. Daí advém que a Rússia não só cantou a técnica ocidental, mas também o estilo de vida americano, onde os valores humanistas europeus são substituídos pelos elementos puramente técnico-mecânicos na vida. Essa captação não é somente na cultura, mas incorpora-se no corpo doutrinário do leninismo-stalinismo, versão bizantina do marxismo.
"O leninismo é uma escola teórica e prática que forma um tipo especial de militante do Partido e do Estado, que cria um estilo especial leninista no trabalho. No que consistem os traços característicos deste estilo? Quais são as suas particularidades? Suas particularidades são: a) o impulso revolucionário russo; b) o espírito prático norte-americano. O estilo de leninismo consiste na reunião dessas duas particularidades" (em: Stalin - Os fundamentos do leninismo, p. 173, ed. Assunção). Tal como Chicago é cantada em verso por Maiacowsky, o espírito prático norte-americano o é também por Stálin: "O sentido prático norte-americano é a força indomável que não conhece nem reconhece barreiras, que com sua insistência e sua tenacidade destrói os obstáculos, embora pouco importantes, suscetíveis de dificultar a conclusão da tarefa iniciada e sem o que não é concebível um trabalho sério qualquer" (obra citada, p. 174). Em síntese, o bolchevismo, segundo Stálin, aparece assim definido: "A ciência do leninismo no trabalho do Partido e do Estado consiste na união do impulso revolucionário russo com o sentido prático norte-americano".
Assim como a Rússia de Moscou dos grandes boiardos e patriarcas leva a Rússia a verter-se nas formas alheias do alto barroco da Ilustração do século XVIII (1703), o bolchevismo leva a Rússia a tomar consciência do seu passado, atualizando a herança bizantina do Estado totalitário e do líder carismático (Lenine ou Stalin) e a tomar consciência de seu presente e futuro, adotando a técnica ocidental e seu espírito, na versão norte-americana. Daí a escolha entre dois mundos: Rússia ou Estados Unidos, ser um falso problema, não há o que escolher, eles como opostos se completam e identificam. Assim como a Rússia se ocidentalizou com a técnica (Revolução Russa), os EEUU se totalizaram pelo aparecimento de tendências totalitárias em seu seio (MacCarthy, M. Carram).
Perguntam os senhores: e a "revolução socialista" de 1917, onde ficou? A isso respondemos dizendo que a Revolução Russa no seu mecanismo econômico foi uma revolução industrial, que, pelo fato de dar-se em um país sem tradição burguesa ocidental e na decadência do capitalismo liberal, foi levada a cabo pela burocracia estatal dentro dos quadros do capitalismo de Estado. Por dar-se na decadência do capitalismo liberal teve a intenção subjetiva socialista esmagada, com o sufocamento da "Oposição Operária", da revolta dos Marinheiros de Cronstadt, onde se deu a passagem das fábricas da mão dos operários e seus Comitês para as mãos dos dirigentes nomeados por Lenine e Trotsky, e onde os Soviets foram atados à organização na qual a burocracia estava mais forte no Partido bolchevista. Assim, o apoio social proletário que mantinha a Revolução Russa foi substituído pela dominação burocrática dos funcionários do Partido, no Estado, nos Sindicatos e nas fábricas. Assim, hoje em dia, existe na Rússia capitalismo burocrático sem existir burguesia no sentido ocidental. Ele é a síntese lógica de dois processos: da herança da tradição estatal totalitária de Bizâncio com a assimilação da técnica ocidental e do estilo de vida norte-americano, sob a direção de uma burocracia capitalista. Isso nos leva a definir o bolchevismo como um produto de pseudo-morfose.

Notas
1. Tiglat-Pilesher III ou Teglatefalasar III (746 a.C.-727 a.C.), imperador assírio que conquistou a Babilônia.
2. Os Nestorianos, no século V, eram seguidores de Nestorius, bispo de Constantinopla. Acreditavam que Cristo reunia em si duas naturezas: uma divina e outra humana. Negavam a divindade de Maria, alegando que ela era mãe do Cristo homem e não do Deus. Os monofisistas, também do século V, opunham-se aos nestorianos, afirmando a natureza una de Cristo.
3. O nome desse herói é Ilya Muromets, cuja grafia aparece diferente nesse artigo e que é ligado às Bilinas. Estas são narrativas orais épicas, que surgem a partir do século XI e focalizam de modo especial o período de Kiev, no qual se deu a ligação do Estado Russo com a religião cristã ortodoxa.
4. Respeitou-se a grafia dada pelo autor no texto original encontrado no jornal.



* Este artigo foi encontrado no Arquivo Edgar Leuenroth, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), pela professora Doris Accioly e Silva, em 1999, que também lhe acrescentou resumo, palavras-chave e notas.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

UMA LEITURA LIBERTÁRIA DE MARX



UMA LEITURA LIBERTÁRIA DE MARX [*]

Maurício Tragtenberg

Escolhi um tema – uma leitura libertária de Marx – e na hora de montar o esquema dissertativo dei-me conta da amplitude da escolha. Aí vi que poderia dar como subtítulo ao tem mais ou menos “Deus e o Mundo”.
De qualquer maneira, ao escolher esse tema, ele vinha de encontro a uma reflexão de muitos anos, que se iniciou primeiro com a leitura de Karl Marx e depois com a leitura de seus opositores, especialmente Bakunin (1814-1876). O problema de Marx e Bakunin é o seguinte: em geral, ou se é um adepto fanático ou se é um inimigo rancoroso. As duas posições não são muito inteligentes.
Em primeiro lugar, Marx nunca usou a expressão marxismo. Esse foi um termo usado por Bakunin para definir as pessoas que atuavam em torno de Marx. Poderia dizer que o termo marxismo não é monolítico; o marxismo, enquanto conjunto de textos, imbrica em várias leituras. Seus opositores – a Primeira Internacional, os chamados anarquistas, embora prefira usar o termo socialismo libertário – têm se destacado muito por uma espécie de anticlericalismo. O problema é que o anarquismo, enquanto conjunto de textos, não desenvolveu uma crítica sistemática do capitalismo, do Estado, da burocracia e do autoritarismo. Lendo os textos econômicos anarquistas pode-se perceber que a reação a isto é mais emocional do que propriamente estruturada.
Atribui-se a Marx a proposta de Estado do povo ou Estado operário, enquanto o anarquismo propõe a abolição pura e simples do Estado. Marx proporia uma estrutura disciplinada e uma ditadura do proletariado. Ele seria um determinista econômico, enquanto os anarquistas enfatizam o aspecto psicológico, subjetivo, da revolução, criticando o marxismo em função de ser uma doutrina de intelectuais que elaboram com bizantina complexidade o método dialético para que os líderes controlem o movimento.
O outro ponto é que o anarquismo proporia uma organização horizontal, igualitária e democrática, e Marx, uma organização hierárquica, centralizada, com base no conceito de vanguarda. Em suma, existe o estereótipo de que Marx é um autoritário e Bakunin um libertário. Depois de ler tanto um quanto outro, cheguei a algumas conclusões, um pouco diferentes do que muita gente espera.
A primeira é que o Estado do povo é um conceito que Marx nunca usou. Na “Crítica ao Programa de Gotha”, ele justamente faz a crítica do chamado Estado do povo ou Estado popular.
Quanto ao determinismo econômico, fundamentalmente o que encontrei em Marx é a rejeição do materialismo. Numa carta de 27 de setembro de 1890, Engels critica isso, dizendo que é o homem real que luta, que a história não é feita deterministicamente de maneira rígida por leis econômicas impessoais. Elas existem quando encarnadas por homens reais numa situação de classe, e essa classe numa situação de luta. E isso se deveu a uma briga entre Marx e Bakunin.
Na polêmica, Marx foi acusado de impor um socialismo de cima, esquecendo um outro dado – que aliás aparece no texto da Primeira Internacional e que foi escrito pelo próprio Marx, embora não apareça seu nome –, que é o fato de que “a libertação dos trabalhadores deve ser obra dos próprios trabalhadores”.
Por outro lado, a questão de que ele era um defensor da teoria da vanguarda, do centralismo total, acho que mais se aproxima de Lênin do que propriamente de Marx. Além disso, na Primeira Internacional, Bakunin era a favor de um Estado pós-revolucionário, considerava a Internacional como a vanguarda dos trabalhadores e fez uma proposta de concentração do poder num comitê que dirigiria o trabalho físico obrigatório, a tendência compulsória, dormitórios comunais e uma sociedade socializada.
No fundo, o que concluo pelo que li em Bakunin é que sua herança é ambígua. Ela pode tanto ser interpretada no sentido libertário como também tem muitos aspectos autoritários, muitos aspectos negativos, no sentido do vanguardismo de alguns pós-marxistas.
Minha fala é no sentido de através da prática e da teoria de Marx ver a contribuição dele para a luta dos trabalhadores, basicamente em dois sentidos: na autonomia da luta dos trabalhadores, como valor central, e, em segundo, na liberdade política, sem a qual nenhum planejamento econômico pode inclusive ser discutido.
Há uma falsa associação entre os nomes de Marx e Engels, porque de fato existem algumas defasagens entre os dois. Enquanto Engels pregava uma dialética da natureza, a ideia do pensamento como refluxo imediato do social, a preocupação de Marx era constituir-se numa expressão teórica do movimento real da sociedade.
A maior preocupação de Marx era com a compreensão do movimento que leva à autoemancipação do trabalhador e ela só viria como fruto da sua autoatividade, entendida como a verdadeira ação de classe. A intelectualidade poderia colaborar na educação política do trabalhador, porém, não a substituindo no processo de auto-organização e ação.
A greve e o sindicato para Marx eram a superação da expressão de concorrência que o capital estabelece entre a mão de obra. Segundo ele, o proletariado, através da luta, adquire consciência da submissão histórica.
Para Marx, tratava-se de libertar o proletariado e a sociedade do domínio de duas ditaduras: a do dinheiro e a do Estado. Ele considerava o Estado representativo moderno como uma escravidão emancipada. Para ele, era fundamental a preservação da autonomia de ação da classe operária.
Em seus escritos, desenvolveu o tema da associação, visto como o instrumento que o trabalhador utilizaria no combate ao Estado pela abolição do assalariado, pela reapropriação do saber e também pela abolição da divisão capitalista do trabalho, que cria o idiotismo da profissão.
A associação constituía-se num processo e num projeto revolucionários e a Comuna de Paris é o maior exemplo, segundo Engels, do que é a ditadura do proletariado, porque era a mais audaciosa negação do Estado, entendido como agente da classe dominante. Para ele, o Estado situa-se no nível político à medida que condiciona a distribuição de mais-valia entre os setores dominantes.
Quando estão a reboque de frentes burguesas, os partidos que tomaram o poder em nome do proletariado, em vez de instituir a predominância do social sobre o econômico, o que diferenciaria qualitativamente o modo de produção capitalista do socialista, lutando pela transição ao comunismo, não o fazem. Acabam com o capitalismo privado a pretexto de uma fase de transição e reconstituem relações capitalistas de produção sem o modo de produção capitalista, isto é, emancipam-se do proletariado em vez de emancipá-lo, autonomizando-se como uma burocracia que coletivamente o explora e redistribui a renda nacional conforme seus interesses de casta.
Nas organizações horizontais, as massas atingem sua maioridade através de várias fases. Por meio dessas associações, os trabalhadores se apresentam; não se representam no sentido de um conjunto de cargas, cuja nomeação seja feita de cima para baixo e que tenham imunidade em relação aos seus iguais.
Elas são uma forma de Estado em extinção e representam a implantação das relações de produção socialistas, que se dão no mesmo processo. Unificando a esfera econômica à política, vinculando o trabalhador aos meios de produção, elas criam novas relações sociais, pois a manutenção da separação entre trabalhadores e meios de produção perpetua o poder político.
O projeto socialista desqualifica-se como tal na medida em que coloca entre o produtor e o processo de produção o tecnocrata, que autonomiza-se a ponto de converter-se em um novo patrão coletivo da classe operária, embora juridicamente a propriedade privada inexista.
A inversão que implica a revolução significa a abolição de intermediários no plano econômico, dos tecnocratas administrativos que separam o produtor dos meios de produção e, no plano político, a abolição do político profissional, com a integração da esfera política à econômica, através da alta integração e organização operária de conselhos, grupos, comissões de fábrica, comunas ou associações.
Os chamados partidos operários, quaisquer que sejam suas diferenças menores, que se reclamam seguidores da tradição de Marx, usam o nome operário para enquadrá-los nos aparelhos partidários ou estatais de sua luta. Esses partidos tendem a cultivar o socialismo em palavras e a reproduzir o capitalismo.
Seja na forma de pluralismo partidário ou de partido único os partidos tendem a desenvolver uma nova forma de realização do antigo modo de produção capitalista. Ressalto especialmente o caso dos sindicatos sob o regime capitalista: mesmo aqueles que são eleitos em oposição aos “pelegos” tendem inconscientemente a reproduzir práticas que eles criticavam. Isso porque tanto o sindicalismo oficial como os partidos políticos transformam os operários em ex-operários, daí a sua burocratização implacável e inevitável.
Mas há exceções, mesmo no regime capitalista. No campo sindical, temos a Central Sindical Boliviana (COB), a Confederação do Trabalho na Espanha (CMT) e alguns sindicatos metalúrgicos de cidades argentinas. Nesses sindicatos, o chamado dirigente sindical cumpre sua jornada de trabalho diária como qualquer outro de sua categoria. Após cumpri-la, dirige-se à sede sindical para ocupar o posto para o qual foi eleito. Não há separação entre trabalho cotidiano e a função sindical.
Concluindo, através de Marx compreendemos que a teoria não é receita a ser aplicada, mas ela tem validade à medida que acompanha e explica o movimento real. Nesse movimento insere-se a luta de classe, onde o operário cria instituições horizontais e é também o embrião de um modo de produção socialista no seio do capitalismo. É através das comissões de fábrica que se pode pensar um planejamento socialista e não através do “planismo” estatal e burocrático de cima para baixo.
A função do intelectual não é dirigir, enquadrar. É simplesmente, quando solicitado, assessorar e não querer dizer para o trabalhador o que é melhor para ele e não se transformar em sacerdote do Estado, porque Estado capitalista não se discute, mas também o Estado operário é um termo que Marx nunca usou, porque é aquele aborto da sociedade a que se referia ele falando da prática da associação feira pelo proletariado por ocasião da Comuna de Paris.


[*] Originalmente publicado em Cadernos Apropuc, São Paulo, 1983. O texto foi escrito para um debate com a participação de Maurício Tragtenberg e Leandro Konder.

domingo, 2 de outubro de 2016

A Escola Como Organização Complexa

A Escola Como Organização Complexa

Maurício Tragtenberg

A ocidentalização da cultura caminha a par com o desenvolvimento urbano, comercial e a necessidade de “letrados” para darem andamento burocrático às estruturas de poder formadas em torno da Igreja e do Estado Moderno.
De um lado, o intelectual é domesticado no contexto das universidades ligadas à Santa Sé, de outro, com a emergência do jesuitismo, seu aprendizado passará pelo processo de organização e planejamento de estudos num espírito de obediência – é o sentido da ratio studiorumde 1586.
No século XIX a expansão da técnica e a ampliação da divisão do trabalho, com o desenvolvimento do capitalismo, levam à necessidade da universalização do saber ler, escrever e contar. A educação já não constitui ocupação ociosa e sim fábrica de homens utilizáveis e adaptáveis.[1]
Hoje em dia a preocupação maior da educação consiste em formar indivíduos cada vez mais adaptados ao seu local de trabalho, capacitados porém, a modificar seu comportamento em função das mutações sociais. Não interessa, pelo menos nos países industrialmente desenvolvidos, operários embrutecidos, mas seres conscientes de sua responsabilidade na empresa e perante a sociedade global.[2] Para tal constitui um sistema de ensino que se apresenta com finalidades definidas e expressas.
Se esse, porém, é o objetivo do sistema de ensino, insere-se no mesmo corpo professoral encarregado de transmitir o saber e mais preocupado ainda em inserir-se na sociedade, ter reconhecimento oficial, êxito no magistério enquanto “carreira”, utilizando para isso os diplomas reconhecidos possíveis, numa sociedade onde, segundo Max Weber, o diploma substitui o direito de nascença.
A realização de tais objetivos pressupõe a existência de uma “burocracia pedagógica” com objetivos definidos ante a sociedade global, porém, nem sempre os predominantes.
O sistema burocrático estrutura-se nas formas da empresa capitalista como também na área da administração pública e seu papel essencial é organização, planejamento e estímulo. O sistema burocrático estrutura-se em nível de cargos, que por sua vez articulam-se me forma de “carreira”, onde o diploma reconhecido, tempo de serviço e conformidade às regras constituem pré- condições de ascensão. Seu modo de recrutamento e sistema de promoção são definidos por ela como o mecanismo de comunicação intraburocrático, diluído nas diversas áreas de competência.
Um dos aspectos estruturais do sistema de educação burocrático é que os usuários não controlam de modo algum a gestão dos fundos que dedicam à coletividade. A estrutura burocrática do ensino em nível nacional desenvolve-se em três níveis:
q       Organização do pessoal
q       Programas e trabalho
q       Inspeções e exames
No que se refere a pessoal, o burocrata da educação está separado dos meios de administração como o operário dos meios de produção, o oficial dos meios de guerra e o cientista dos meios de pesquisa.
O pessoal docente no sistema burocrático pode ser recrutado por concurso, de títulos e provas, contratado a título precário cujo nível de vencimento dependerá do número de aulas atribuídas por escolha fundada em pontos obtidos, a critério das Secretarias de Educação. Pode-se dar o caso do docente contratado a título precário e estabilizado no cargo por decreto em obediência a exigência constitucional. A ascensão do docente na carreira não depende da verificação dos resultados obtidos a longo prazo sobre seus alunos; portanto, os critérios da eficácia ou valor são desprezados e o de conformidade (aprovação nos exames, provas) supervalorizados.[3]
O exame, mais que o programa, define a pedagogia do docente. O objetivo que a pedagogia burocrática lhe propõe não é o enriquecimento intelectual do aluno, mas seu êxito no sistema de exames.
O melhor meio para passar nos exames consiste então em desenvolver o conformismo, submeter-se: isto é chamado de “ordem”. Portanto, colocam-se três objetivos ao docente: conformidade ao programa, obtenção da obediência e o êxito nos exames.* A escola conduz a um condicionamento mais longo num quadro uniforme e máxima divisão do saber que não visa à formação de algo, mas sim, a uma acumulação mecânica de noções ou informações mal digeridas. Se na Europa ou América Latina, o professor tende cada vez mais a responder a controles burocráticos, nos EUA as associações de pais, industrias e grupos exercem pressões para que se ensinem determinadas coisas com um tipo de orientação definida. Essa interiorização da burocracia, Alexis de Tocqueville no século XVIII e Riesman no século XX consideram uma das características da cultura norte-americana.
A comunidade de pais encontra no controle burocrático a melhor garantia contra quaisquer tendências desviantes do professor ao saber que é severamente controlado, julgado e regulamentado.
É nos níveis mais inferiores de ensino que a comunidade de pais tem maior peso. Quanto mais pobre é a origem social dos alunos, o controle do vértice sobre a escola mais será ligado ao controle pela base na forma de Conselho ou Comunidade de Pais. Quanto mais alta for a origem social dos alunos e professores, também em nível universitário, o controle burocrático mais satisfará às necessidades de controle.
Há uma ambivalência em relação à figura do professor: de um lado é desprezado como “servidor da comunidade”, de outro, encarado como portador do saber absoluto. É criticado por não fazer sentir todo o peso de sua autoridade sobre o aluno. O público gosta da burocracia, quer ver seus alunos enquadrados, condicionados, como única condição de atingir a fase adulta.
Uma escola fundada na memorização do conhecimento, num sistema de exames que mede a eficácia da preparação ao mesmo, nada provando quanto à formação durável do indivíduo, desenvolve uma pedagogia paranóica, estranha ao concreto, ao seu fim. Quando falha, interpreta este evento como responsabilidade do educando.
Uma minoria de jovens pertencentes a camadas superiores da classe trabalhadora ou pequenos funcionários não freqüenta o secundário e se realiza em profissões que exigem formação profissional específica. Assemelha-se à alta burguesia, que não se preocupa com a promoção social de seus filhos, oferecendo-lhes mais lazeres e liberdade, condições de apreensão de um autêntico conhecimento. Enquanto isso, a pequena burguesia quer subir e os trabalhadores estão determinados a suportar uma escola que não toma em conta suas aspirações. Esse contingente às vezes perfaz 80% da população.
No âmbito microescolar encontramos na escola uma burocracia de staff (diretor, professores, secretário) e de linha (serventes, escriturários, bedéis). O relacionamento staff e linha varia muito com o grau de escola, se médio ou superior.
Efetuou-se atualmente no Brasil uma conjunção do nível primário e médio, tendendo à escola unificada, que não deixou de criar problemas de “áreas de competência” entre o staff: quem dirige a escola unificada, o diretor do antigo primário ou do secundário?
Em suma, na escola como organização complexa articulam-se várias instâncias burocráticas acima enunciadas, incluindo a inevitável Associação de Pais e Mestres e o aluno, objeto supremo da instituição, conforme o tom dos discursos solenes em épocas não menos solenes.
O corpo de professores procura manter sua legítima esfera de autoridade sem intromissões estranhas. É unânime na recusa à interferência dos pais no seu trabalho, pois isso pode prejudicar sua posição de autoridade e sujeitá-lo a controle por elementos estranhos.[4]
Nas suas relações com o diretor a expectativa de comportamento dos professores é que recebam apoio do mesmo, seja em relação a alunos ou pais de alunos. Funciona o princípio de que nenhum professor deve criticar colega antes terceiros, especialmente alunos.
O diretor por sua vez funciona como mediador entre o poder burocrático do quadro administrativo e a escola, como conjunto, sofre pressão dos professores no sentido de alinhar-se com eles, dos alunos para satisfazer reclamos racionais ou não, e dos pais, para manter a escola ao nível desejado pela comunidade. Tem de possuir as qualidades de um político, algum senso administrativo e ser especialista em relações humanas e relatórios oficiais.
O pessoal de linha obedece-o diretamente, pode ser utilizado como meio do corpo professoral pelo controle das conversas de corredor e da sala dos professores.s e o diretor for do tipo ausente, pode ter em suas mãos o controle da docilidade dos alunos por meios informais, assegurando o bom andamento da instituição.
O pessoal administrativo de linha enfatiza algumas singularidades do comportamento burocrático, evita a discussão pública de suas técnicas, os despachos de processo são sonegados ao interessado enquanto não se der o chamado despacho final no citado processo. burocracia administrativa entende-se como uma certa adesão a regras – atividades-meio – tendo em vista fins determinados. No entanto, a disciplina, definida como adaptação a regulamentos, não é encarada como adaptação a finalidades precisas, mas constitui-se num valor básico na estrutura burocrática. Este deslocamento das finalidades originais se dá no processo burocrático determinar alto nível de rigidez e incapacidade de ajustamento a situações novas. Daí a ênfase no formalismo e o exagero no ritualismo burocrático nos estabelecimentos de ensino, no nível administrativo.
A estrutura de “carreira” leva o funcionário a adaptar seus pensamentos, sentimentos e ações nesta perspectiva, o que induz à timidez, conservadorismo rotineiro e tecnicismo. A burocratização desenvolve a despersonalização de relações entre burocracia e público, funcionários de secretaria escolar e o estudante. Ela desenvolve a tendência do burocrata concentrar-se nessa norma de impessoalidade e a formar categorias abstratas – isso tende a conflitar suas relações com o público. Pois, os casos peculiares individuais são ignorados, o interessado convicto das peculiaridades de seu problema opõe-se a um tratamento impessoal e categórico.
O comportamento estereotipado do burocrata não se adapta às exigências dos problemas individuais. O tratamento impessoal que ele confere a assuntos de grande significado pessoal para a parte interessada (aluno, professor) o leva a ser visto como arrogante e insolente.
Tudo isso é coberto por uma grande capa de dramaturgia. Que significa isso? A dramaturgia, o culto da aparência, dos gestos, tem um valor legitimador na estrutura burocrática. Da mesma maneira que a bata branca do médico ou do professor mostra que ali há alguém de limpeza irrepreensível, a régua de calculo do engenheiro mostra alguém altamente especializado e preciso. O talento dramático tem cada vez mais importância na função hierárquica, qual seja, do diretor severo, porém, benevolente, o inspetor rígido e ao mesmo tempo assíduo tomador de cafezinhos na diretoria, alem de assinante regular do célebre Livro de Termo de Visitas da Escola, como comprovante que passou por lá.
Há um conceito, segundo o qual os ocupantes de posições hierárquicas são os mais capacitados, mais trabalhadores, os mais indispensáveis, os mais leais, fidedignos e os mais autocontrolados, em suam os mais justos, honestos e imparciais. Também visualiza-se que uma pessoa muito ocupada é de importância incalculável para a burocracia e encara suas tarefas de maneira mas séria que outras pessoas. É aconselhável para aqueles que querem vencer na estrutura burocrática carregarem as pastas debaixo do braço, mesmo quando saiam à noite ou pensem folgar nos fins de semana.
Acresce nas burocracias educacionais, escolares ou ministrais, que o sistema de status tem seu próprio dispositivo dramatúrgico que inclui insígnias, títulos e deferências e símbolos da grandeza material como salas forradas de tapetes ou mobiliário luxuoso, ainda ditos filosóficos profundos como vê quem adentra na sala de um administrador universitário, por sinal também professor: “Quem sabe faz, quem não sabe ensina”.
Em suma, a conduta burocrática implica uma exagerada dependência dos regulamentos e padrões quantitativos, impessoalidade exagerada nas relações intra e extragrupo, resistências à mudança e configura os padrões de comportamento na escola encarada como organização complexa. Em suma, o administrativo tem precedência sobre o pedagógico.

Escola como centro de reprodução das relações de produção

Não há escola única. Há graus de ensino onde alguns têm acesso em nível decrescente quanto mais alto for o escalão acadêmico. A partir do primário opera-se a divisão de duas redes de escolarização de classes, na medida em que o ensino primário:
a)     garante uma distribuição material, repartição dos indivíduos nos dois pólos da sociedade
b)     garante uma função política e ideológica de inculcação.
A separação dos alunos em duas redes no ensino primário é o meio e principio do funcionamento. Esta separação se efetua no interior da escola primária, uma em direção acadêmica, outra em direção profissional. Uma rede é primária profissional e outra secundária superior. O prolongamento da escolaridade obrigatória reforça o processo. A generalização da escolaridade obrigatória única é a generalização da divisão. A inculcação ideológica dá-se através das várias formas de saber, verdade, cultura, gosto.[5]
Na rede escolar o culto da arte, ciência pura, profundidade filosófica, sutilezas psicológicas, são formas de inculcação vinculadas a orientar a ação do educando conforme as normas de direito, políticas hegemônicas, sendo representadas enquanto deveres.
A inculcação não se dá pelo discurso mas através de práticas de exercícios escolares onde a nota equivale ao salário, recompensa pelo trabalho realizado. Da mesma maneira que o mercado do trabalho é regulado pela competição, no interior da escola ela é cultuada nos sistemas de promoção seletivos. O aluno é obrigado a estar na escola e é livre para decidir se quer ou não, ter êxito ou não, como o indivíduo é livre ante o mercado de trabalho.
As práticas do ritualismo escolar, deveres, disciplinas, punições e recompensas, constituem o universo pedagógico. A escola realiza com êxito o processo de recalcamento de pontos de vista opostos aos hegemônicos e esse sujeição condiciona a inculcação. O trabalho é vagamente valorizado, enquanto artesanato, o processo histórico é reduzido a um conjunto de guerras, datas e nomes cuja finalidade principal é reduzir à insignificância o significativo: dimensões sociais do histórico ou sua temporalidade. Veja-se a dificuldade em convencer os historiadores de que o presente também é história.
O aparelho escolar contribui para a reprodução da qualidade da força de trabalho, na medida em que transmite saber e regras de conduta (ler, escrever e contar), que têm um destino produtivo.
Os alunos da rede escolar recebem também conteúdo científico. Eis que o processo de escolarização contribui para a reprodução das condições materiais de produção na medida em que a produção social é uma transformação material da natureza, supondo o conhecimento objetivo sob as mais variadas formas.
Todas as práticas escolares estão a serviço da inculcação, que pressupõe técnicas e métodos apropriados. A técnica escolar formaliza os conteúdos de inculcação e os de saber positivo – as disciplinas escolares – homogeneizando-as na medida em que são ensinadas como regras escolares.
O conhecimento escolar é usado no quadro de problemas surgidos da prática escolar com objetivos definidos: dar notas, classificar e punir ou premiar os indivíduos. Isso porque há uma separação entre as práticas escolares e as práticas produtivas em geral. A separação escolar é a chave na determinação do papel no conjunto das relações da sociedade atual. Toda escolarização é, por sua natureza, conservadora, pois é quem legitima a separação entre consciência e a prática.
A escola é regida pelo princípio da contradição e não são categorias como psicologia do escolar, normal/anormal e, sim, categorias como inculcação, submissão, recalcamento, que podem explicar alguns fenômenos que ocorrem nas estruturas escolares. Como Aparelho Ideológico, a escola primária reflete uma unidade contraditória de duas redes de escolarização. A escola favorece os favorecidos e desfavorece os desfavorecidos e o princípio disso está na diferença social da família.
Trata-se de perguntar a cada indivíduo como ele passou sua infância pré-escolar, como determinante de sua escolaridade individual ulterior. As classes sociais não podem ser pensadas como a partir dos indivíduos. Elas não se reduzem a propriedades sociais características de cada indivíduo. Essa visão atribui importância à família, lugar material da primeira educação. A explicação é regressiva, cronológica, individual.
Essa cronologia – família, escola primária, ginásio ou não – só existe do ponto de vista do indivíduo. Na realidade, família, escola primária, ginásio etc.
1)     preexistem ao próprio indivíduo
2)     coexistem simultaneamente
3)     mantém relações necessárias uns com os outros.

O professor está a serviço do aparelho escolar, não de sua classe. À falta de base, um nível de ensino remete ao imediatamente inferior e este à família, esquecendo que há duas redes devido à relação social de produção. Se há famílias providas e desprovidas é porque há duas classes. O funcionamento do conjunto do aparelho escolar e o lugar da escola primária no interior do aparelho escolar são definidos na sua função de reprodução das relações de produção.
Para Marx, as relações de produção são a combinação social das forças produtivas, a maneira pela qual os instrumentos de produção e o próprio trabalho produtivo se repartem socialmente entre os vários agentes sociais da produção. O essencial é a relação de propriedade. Daí, as relações sociais da produção capitalista se definirem pela separação entre o trabalho produtivo e os meios de produção, exploração do trabalho pelo capital.
O operário reproduz-se enquanto tal na medida em que não tem elementos de acumular e sim, somente, reproduzir sua força de trabalho. Essa reprodução pode originar-se a partir da industrialização da agricultura e empobrecimento das classes médias.
O aparelho escolar tem seu papel na reprodução das relações sociais de produção quando:
a)     contribui para formar a força de trabalho
b)     contribui para inculcar a ideologia hegemônica, tudo isso pelo mecanismo das práticas escolares
c)     contribui para reprodução material da divisão de classes
d)     contribui para manter as condições ideológicas das relações de dominação.
O aparelho escolar impõe a inculcação ideológica primária e é seguido pelos diversos aparelhos – televisão, publicidade, seitas etc. A escola inclui, na forma de rudimentos, técnicas indispensáveis à adaptação ao maquinismo, em gera na forma preparatória.
Na família camponesa, fundada na exploração agrícola em comum, a escola é considerada tempo perdido, não há escola de agricultura. O que aparece com esse título é escola para a exploração agrícola capitalista. A escola pode ser aparelho ideológico segundo estágios do modo de produção capitalista na sua combinação concreta interior a cada formação social capitalista. A escola não cria a divisão em classes, mas contribui para esta divisão e reprodução ampliada. A reprodução ampliada das classes sociais comporta dois aspectos:
a)     A reprodução ampliada dos lugares que ocupam os agentes. Estes lugares designam a determinação estrutural de classes, i. e., o modo de existência da determinação pela estrutura de produção, dominação, subordinação política e ideológica nas práticas de classe: é um efeito da estrutura sobre a divisão social do trabalho.
b)     A reprodução/distribuição dos próprios agentes entre estes lugares. Os aparelhos ideológicos intervêm ativamente na reprodução dos lugares das classes sociais. Há uma reprodução inicial das classes sociais e pela oposição de classes, onde se move a reprodução ampliada da estrutura, inclusive das relações de produção que preside o funcionamento dos Aparelhos ideológicos.
Os Aparelhos Ideológicos não criam a ideologia, mas inculcam a ideologia dominante. Não é a Igreja que cria a perpetuação da religião, é esta que cria e perpetua a Igreja, diferente do que pensava Max Weber.
A análise do fetichismo da mercadoria ultrapassa os Aparelhos Ideológicos. Uma empresa é um aparelho, no sentido de que pela divisão social do trabalho em seu interior, por exemplo, pela organização despótica do trabalho, são elementos que definem as relações políticas e ideológicas concernentes aos lugares das classes sociais no conjunto da estrutura. Há mecanismos para reprodução de lugares e agentes, daí a inanidade em falar de ascensão social ou mobilidade social.[6]
Dá-se a reprodução dos agentes. A qualificação é uma qualificação-sujeição, não é somente qualificação técnica do trabalho. A empresa é um Aparelho distribuindo seus agentes no seu interior. As classes capitalistas não são castas escolares. A relação escola-aparelho econômico continua a exercer sua ação durante sua atividade econômica: isso se chama pudicamente formação permanente.
Não é a escola que faz com que sejam principalmente camponeses a coparem os lugares suplementares de operários. É o êxodo dos campos, acompanhando a reprodução ampliada da classe operária, que desempenha o papel da escola.
c)     Trata-se de uma distribuição inicial dos agentes ligada à reprodução inicial dos lugares das classes sociais: é ela que designa para este ou aquele aparelho, para esta ou aquela série entre eles, e segundo as etapas e as fases da formação social, o papel respectivo que eles assumem na distribuição dos agentes.[7]
As organizações complexas controlam e domesticam as forcas sociais. Elas codificam, centralizam. Essa apropriação pela organização da existência, sob todas as formas, é realizada também pela destruição e desintegração, destruindo as forças que se opõem à sua expansão.
Atrás do discurso da racionalidade, nessa luta, a organização abriga-se para legitimar sua empreitada e desqualificar uma realidade que ela mutila.
Taylor, no que tange à organização industrial, Lenin, no que se refere à organização política e Clausewitz, pata a organização militar, são os fundadores de uma teoria que dominam a partir do status de chefes. A organização científica necessita de pais “místicos” para assegurar sua fundamentação.
As organizações são, acima de tudo, produtos historicamente dados e não sistemas fechados a-históricos, como pensa Crozier. Pretendendo romper com o passado, criticando acerbamente as instituições tradicionais, a teoria organizacional procura uma ruptura “epistemológica”. Essa ruptura tem como função proibir quaisquer comparações entre instituições tradicionais e instituições modernas. Nessa imagem de organização encontram-se estocados mitos, fábulas e lendas, um universo fantasmagórico mais ou menos discretamente camuflado que subsiste na base do discurso organizacional.
As organizações políticas, como as industriais, reforçarão a área do imaginário. O tom será mais ou menos severo, pois, na iminência da tragédia, a traição ameaça o herói!
A escola tem um papel nessa mascarada organizacional, operando as variações mais amplas, a partir dos papéis de mestre, aluno, burocrata, administrador.
O que se esconde atrás da representação da racionalidade organizacional? Marx nos ensinara a ver que atrás do espetáculo da circulação de mercadorias escondia-se o trabalhador mutilado; o fetichismo mercantil esconde o sentido da organização. Ela é a base mais apropriada à imaginação moderna. Isso constitui uma das condições do desenvolvimento das organizações.
Centro da tensão é ao mesmo tempo da transferência: o tempo presente transcorre em função de satisfações futuras. A organização burocrática exerce a ditadura do signo, onde as palavras- chave que a designam são Contabilidade, Plano, Programa, Controle. A organização complexa apresenta-se como forma à qual tudo deve se submeter.[8]
Nos supermercados nenhum objeto é percebido na sua imediatez: tudo é empacotado, conservado, etiquetado. Do produto somente percebemos a representação fotográfica, legenda, desenho. Os corpos materiais dissolvem-se em corpos de signos, são elementos num único texto. Idêntico processo de coisificação se opera com o elemento humano. Dirigir homens é como mercadorias, manipular signos.
As organizações complexas traduzem o real numa linguagem simples, transcrevem os corpos em signos. As organizações complexas traduzem o corpo em signos. Realizada a operação, o que sobrou do corpo original? Ele desaparece na nova representação. A organização toma como interlocutor o corpo que ela produziu, ela define, para nós, o emprego do tempo e do nosso corpo. No fim do processo, o corpo nada mais é do que um signo num conjunto de signos que formam as malhas organizacionais. A organização apropria-se de nosso corpo, de tal forma que qualquer ruptura nos aprece como uma auto-ruptura. É aí que a adesão à organização encontra um de seus fundamentos; o corpo, que adere à organização visualizando a possibilidade de uma ruptura reage com alta carga de ansiedade. Controladores e controlados, engajados no mesmo processo, participam de uma comunidade de destino: a organização da racionalidade. A análise da violência e do sacrifício é inerente à estrutura organizacional.
A organização realiza um processo concomitante: destruição e unificação. O homem dividido na execução de suas tarefas parceladas, isolado no seio da grande metrópole, é reagrupado no interior das imagens organizacionais.
O taylorismo é a fisiologia do corpo dividido.
A organização significa um combate contra a entropia.
Mauss* conta a história do mito tsimhiam onde uma princesa dá à luz uma “Petite Loutre” miraculosamente; dirige-se com a criança à cidade de sei pai, o chefe. Apresenta-se a todos e pede para não mata-la caso a reencontre pescando na sua forma animal. Mas elaesqueceu de convidar um chefe. O chefe e a tribo esquecidos encontram no mar “Petite Loutre”, que tinha na boca uma grande foca e matam-na. O Grande Chefe procura-a e encontra-a no seio da tribo esquecida. Seu chefe desculpa-se, pois não conhecia “Petite Loutre”. Sua mãe, a princesa, morre de melancolia e o chefe culpado involuntariamente encaminha ao Grande Chefe todos os tipos de presentes como expiação.
Os reis se esquecem de convidar outros chefes para seu casamento, os criminosos sempre deixam uma pista. Luta-se em todos os níveis contra a entropia: o mito tsimhiam mostra que uma perturbação no sistema conduz à morte! É o que, em linguagem moderna, é a sabotagem, a pane, que as organizações modernas tentam conjurar. O equilíbrio camufla o desequilíbrio.
As organizações mantêm-se pela transmissão  e energia e sua conversão em trabalho: a reprodução a força de trabalho se dá em períodos de desequilíbrios sociais, pro exemplo, nas migrações rurais-urbanas, onde multidões sem trabalho concentram-se na periferia das grandes cidades; ou em migrações operárias de países estagnados para áreas de crescimento, como portugueses, espanhóis, argentinos e turcos na Europa. Como fonte de energia o trabalhador é vítima do processo de dilapidações e desgaste onde a organização que canaliza sua energia integra-o no movimento de deslocamento e desintegração. Daí verifica-se que a transformação da energia em trabalho só é possível através dos desequilíbrios provocados pelas organizações.
A eficiência do esquema centralizador é simbólica. Nesse sentido cabe à organização a produção do que a diferencia do mundo. A sociedade consumista insere-se no campo da simulação diferencial. A organização unifica a produção, representação da diferença. A dramaturgia converte-se na finalidade principal das organizações: congressos, paradas, desfiles, delegações recebidas com grandes pompas, banquetes, publicidade intensiva. A organização produz o Espetáculo. A distinção entre produção e representação desaparece. A organização deve produzir diferenças simbólicas ou extinguir-se. Assim, o nazismo, pela representação de massas, desmoraliza os oposicionistas reais ou potenciais. Tanto o Tenessee Valley Authority, como as grandes obras sobre o rio Dnieper, não só justificam uma organização centralizada côo também criam condições para o lirismo organizacional. A estrutura de pirâmide impõe a sua ordem, a eficiência nasce da hierarquia, seja a pirâmide familiar, política educacional. A organização é o grande elemento mediador entre “eu” e o “outro”. O medo ao isolamento se dá na medida em que a estrutura piramidal tem os meios para assegurar o monopólio das relações entre os homens. A organização centralizada e unitária constitui o grande refúgio, ela domestica a energia sem direção: não é por acaso que as organizações mais eficientes são aquelas onde predominam um sexo só: por exemplo a Igreja. Ela garante a vida de seus membros, nada é possível em ela. A autonomia inexiste, só há o dilema: inserir-se na organização ou desaparecer. Por isso ela acentua a retórica da integração. O Sindicato para Tannenbaum, a comunidade de Lloyd Warner e a corporação de Durkheim e Elton Mayo, aprecem como possíveis integracionistas num universo dividido.
Na realidade, a oposição segurança-inseguranca, integração-exclusão é artificial. Assim, a revolução industrial organiza o novo modo de produção, ao mesmo tempo que divide o homem num conjunto de tarefas parceladas.
Embora March e Simon argumentem que no bojo da teoria organizacional não há lugar para a coordenação, participam do delírio organizacional, racionalistas que não querem enxergar as organizações como instancias do imaginário também. A direção exclui, como os magos sacrificam. O centro funciona como um dado que deve ser “escotimizado”[9] – também na teoria dos sistemas isso se dá. No entanto, constitui-se me peça fundamental.
A organização burocrática complexa não explicita a necessidade do centro mas o não-necessário como pivô da organização. Tal estranheza faz parte também de certa concepção burocrática de socialismo, onde o Estado deve desaparecer progressivamente e, no entanto, ele domina em toda sua amplitude! O poder é apreendido como escândalo. A coordenação se apropria do espaço reservado ao fantasma piramidal. As relações instituídas apresentam uma sucessão de níveis hierárquicos em que cabe ao superir uma zona reservada e onde o subalterno não pode entrar.
O pai que é proprietário do corpo da mulher, interdito aos filhos, o senhor feudal que se apropria da terra, o professor que dispõe soberanamente de um campo de conhecimentos. O usufruto dessa situação pressupõe a aceitação do papel de pai, proprietário, chefe, professor. Da mesma maneira que o senhor exercia poder absoluto sobre suas terras, os detentores da informação instalam um domínio confortável como “na Régie Renault, com a introdução de uma nova máquina, só o contramestre pode compreender o funcionamento”.[10]
O sistema cultural assiste à ruptura entre apalavras sagrada e profana. Não é mais Deus que dispõe do monopólio do verbo nem a Igreja de sua interpretação. A ciência ocupa hoje o lugar do Verbo Divino. A casta dos cientistas substituiu a hierarquia eclesiástica como elemento mediador entre a palavra superior e a coletividade humana.
O antagonismo “puro” e “impuro” encontra-se entre os chamados trabalhos “sujos” e “limpos” como nas relações entre o trabalho manual e intelectual. A organização através dos seus psicólogos industriais, afirma a possibilidade de vencer  a impureza. Os esgotos podem ser transformados em matéria sã. A guerra limpa, tecnologicamente definida, coexiste com a suja, rústica.
A eficiência da impureza consiste na delimitação das áreas do proibido. Os impuros são intocáveis, só podem ser destruídos. O nazismo significou a dominação totalitária dos puros sobre os impuros. Nas organizações altamente burocratizadas, instituições totais, o impuro é segregado por obstáculos como muros altos, florestas, portas de ferro.
Os contatos com o exterior são monopolizados pela direção. O subalterno não tem contatos com os circuitos externos da empresa, só os responsáveis podem manter tais relacionamentos. Caso haja qualquer caso de espionagem industrial, os subalternos têm menor chance de sair-se bem que os elementos de staff privilegiados por seus contatos com o exterior, que ampliam as possibilidades de manobras dos mesmos.
 Na medida em que a organização burocrática delimita as zonas de impureza interna e externa, ela se assegura uma certa dinâmica energética. O funcionamento é assegurado – como em algumas organizações políticas – pela luta contra os sabotadores do interior e os inimigos do exterior. A empresa só evolui na luta contra as disfunções do mercado. Haverá relação entre o domínio do impuro pelas organizações e o grau de sua eficiência? O nazismo, que definia como fim explícito reduzir as raças impuras, constrói organizações burocraticamente estruturadas para atingir tais objetivos: AS, SS, KL. No entanto, o quotidiano mostra uma constante preocupação em jugular o impuro. A impureza constitui o centro do discurso das organizações industriais. É um dos temas favoritos da manipulação publicitária. Não há nenhum anuncio de detergente que não avalize suas qualidades na cruzada contra o impuro. O bom funcionamento organizacional implica a depuração periódica.
Paralelamente a este processo, se instaura o processo da construção de um imaginário, por mediação da organização, em direção a seus clientes. O campo publicitário organizacional apresenta um universo em que a organização se constitui como prestação de serviços e para a qual o cliente tem sempre razão e manda. A organização é atenciosa e asséptica, benevolente com os caprichos da clientela. O desejo se constitui em elemento fundante da conduta do cliente. Nada lhe é recusado, tudo é permitido; ele pode satisfazer-se na sua imediatez e plenitude. Ela substitui o espetáculo do lucro pela gratuidade. Para tal, constitui uma área onde o dom[11] tem cidadania, pequenos bônus anexos às mercadorias, que possuem uma importância básica na definição da marca. As adaptações ao mercado, inerente às organizações lucrativas, se dão ao lado de um processo de regeneração das mercadorias e serviços propostos à clientela. Quanto à mão-de-obra, o termo “participação” parece ter virtudes suficientes para ancorá-la à organização com muito mais firmeza que o servo à gleba.
A vida só é possível no processo organizacional. O imaginário enquadrado pela organização transforma-se num relutante apelo burocrático, com todo o “pathos” de um ofício de repartição pública, imaginem Sófocles amanuense!
O fato é que a mão-de-obra sai da empresa para entrar no sindicato burocratizado, ou freqüenta a Igreja ou freqüenta um partido, os dois estruturados em forma de pirâmide, com níveis de staff e linha, com dogmáticas rígidas interpretadas legitimamente por outros elementos treinados nesse mister, dispondo dos títulos reconhecidos. Em suma, o ritmo vital é regulado pela escola, exército, empresa, hospital, agência de viagens e, finalmente, o asilo.
Nas instituições totais é o mesmo grupo de co-participantes que controla tudo sob a mesma autoridade, conforme um plano racional geral, seja ele elaborado pelo staff do presídio, do manicômio, do convento ou do colégio interno.
Nessas instituições, há o grupo maior cuja atividade fica confinada aos limites da organização total e o pessoal staff que mantém horário de 8 horas de trabalho e contatos com o exterior. É característica a barreira linha/staff com estereótipos negativos ou agressivos. Há um grande hiato entre eles, grande distancia social.
Enquanto o operário recebe um salário e tem a liberdade de gastá-lo em qualquer ambiente, o mesmo não se dá com o interno das instituições totais que assumem a responsabilidade por ele e exigem algum ou pouco trabalho. Geralmente está incorporado a sistemas de pequenos pagamentos cerimoniosos como, por exemplo, a ração semanal de fumo ou presentes de Natal que motivam os doentes mentais a continuarem em suas ocupações. Em algumas prisões, navios, campos de cortes de árvores é possível alguma poupança forcada: o indivíduo recebe o que lhe é devido após cumprir a pena.
As instituições totais desenvolvem mecanismos de despojamento e mortificação do ego: decisões autônomas são eliminadas mediante a programação coletiva das atividades diárias.
A estrutura da sociedade é escalar, ela articula-se com o aspecto informal definido como regras do local que definem formalmente níveis de proibições. Em troca, o staff oferece recompensas e privilégios, que se constituem em modos peculiares às instituições totais. Receber visitas, fumar um cigarro,o dia da folga, sua negação por qualquer transgressão cometida aos regulamentos, assume um aspecto vital no quotidiano interno da instituição total.
No entanto,nas instituições totais é possível que se dê este processo:os guardas não comunicam infrações aos regulamentos, transmitem informações proibidas aos presidiários, negligenciam as exigências elementares de segurança e aliam aos presidiários em criticas francas aos funcionários da alta burocracia. Muitos podem ter em si uma ambivalência básica em relação aos detentos sob sua guarda: embora condenados, muitos criminosos representam sucesso, em termos de um sistema mundano de valores (alto prestígio, notoriedade e riqueza) e o guarda mal remunerado poderá sentir em associar-se a laguem tão famoso.
Pode dar-se a corrupção pela instituição total através da reciprocidade no caso em que o controle da docilidade do presidiário resida menos nas sanções negativas – o que representa encargos para a administração da prisão – mas na consecução de um certo nível de cooperação voluntária do presidiário. Em troca, infrações secundárias aos regulamentos são ignoradas.

Conclusões

No interior o sistema social as instituições educacionais e seus sacerdotes, os professores, desenvolvem um trabalho contínuo e sutil para a conservação da estrutura de poder e, em geral,d a desigualdade social existente. Duas são as principais funções conservadoras atribuídas à escola e aos professores: a exclusão do sistema de ensino dos alunos das classes inferiores e a que definimos como socialização à subordinação, isto é, a transmissão ao jovem de valores compatíveis com seu futuro papel subordinado.[12]
Examinemos a primeira conclusão. Uma frase repetida continuamente pelos sociólogos liberais é que a escola constitui o mais importante canal de ascensão social. tal proposição é exata na medida em que “a atribuição da posição social é hoje cada vez mais ligada ao sistema de escolaridade”. Mas é errada e mistificadora, se se entender que a escola favoreça ou promova a mobilidade social. Eis que há fortíssimos obstáculos que impedem a inteligência e a capacidade de manifestar-se, privilegiando mais a cumplicidade com o sistema, com o critério de ascensão social.
É importante lambarmos que a família conserva grande parte de usa importância como base inicial da seleção social dos indivíduos, ela transmite ao herdeiro, ao filho, não somente o capital financeiro mas também o capital cultural. Esse capital cultural tem sua legitimidade definida através dos títulos escolares.
O importante é que se desenvolve num sistema de ensino pré-universitário unificado, onde o sistema escolar convence o aluno de origem popular de que é necessário competir para atingir altos escalões, e que “seu destino social depende antes de mais nada de sua natureza individual”[13]. Paralelamente, a escola desenvolve o processo de socialização, ou seja, da aceitação do existente como o desejável. A dificuldade do corpo professoral em adaptar-se às mudanças sócio-culturais pode implicar na sua visualização, não como um corpo que reproduz valores dominantes, mas sim defensor de um patrimônio valorativo superado, qual seja, de vestal da classe média.

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KEACH, E. T. Education and social crisis, Nova York, J. Wiley, 1966.
LOBROT, M. A Pedagogia Institucional. Lisboa, Ed. Iniciativas editoriais, 1966.
MAUSS, M. Oeuvres, Vol. I, II, III, Ed. PUF, França 1969.
SCHEFER, G. Das Gesellschaftsbild des Gymnasiallehrers, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1969.
SCHUH, E. Der Volksschulleher. Berlin, H. Schrodel Verlag, 1962.
THOMPSON, V. As modernas organizações, São Paulo, Ed. F. Bastos
TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e Ideologia, São Paulo, Ed. Ática, 1974.
TROPP, A. The School Teacher, Londres, 1957.

[1] O taylorismo tem como finalidade: eliminar o poder de decisão do operário e tornar o operário uma máquina.
A organização moderna é a instituição onde se realiza a relação de produção que se constitui a característica de todo sistema social, é o mecanismo de exploração e se rege pela coerção e manipulação. A substância a organização não é um conjunto funcional, mas sim, a exploração, o boicote e a coerção.
[2] Para Simon, a hierarquia é necessária para alcançar um fim comum. Ela tende a tornar-se mais rígida quanto mais complexa é a organização. Sustenta que, da mesma maneira como no mecanismo de mercado, o fim de todos coincide com o de cada um.
Acha-se como pressuposto um certo tipo de racionalidade que os utilitários do século passado sustentavam como universal. No entanto, os fins são formulados pela cúpula, a teoria da organização pretende não discutir o problema central do poder, o que explica também o êxito do estudo referente aos “pequenos grupos”, onde o conformismo constitui fonte de felicidade.
[3] O processo acima define a hegemonia do autoritarismo na escola, onde a palavra autorizada é a do mestre, enunciada pelo programa e pelas instruções sobressalentes. O caderno funciona como registro e permite a inspeção a inspeção e o controle da conformidade. Os dispositivos audiovisuais permitem difundir programas pré-fabricados  que correspondem a um discurso escolar estritamente subordinado à organização!
* M. Lobrot C. A. Pedagogia Institucional, p. 161, Lisboa, Editora Iniciativas Editoriais.
[4] A convicção de que o prestígio profissional está progressivamente diminuindo é confirmado por pesquisas realizadas nos EUA, Itália, Alemanha, no que se refere a professores de nível ginasial, conforme G. SCHEFER, Das Geselleschaftsbild des Gymnasiallehrers, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1969, especialmente pp. 43-50.
[5] O discurso sobre a produção é reservado aos tecnocratas, o discurso sobre as relações sociais é reservado aos políticos, o discurso da mudança é reservado aos revolucionários profissionais, o discurso sobre o sexo é reservado para a Educação Sexual e o discurso sobre o corpo é de âmbito dos médicos.
[6] Muitas pesquisas desenvolvidas em diversos países demonstraram que o excessivo contingente de alunos por classe e uma das maiores fontes de insatisfação dos professores, conforme E. SCHUC, Der Volksschullehrer Strofakto en in Berufsleben und ihre Ruckwirkung auf die Einstellung im Berugf, Berlim, H. Schodel Verlag, 1962. Nessa pesquisa que envolveu 508 professores alemães, as maiores fontes de insatisfação provinham do excessivo número de alunos por classe, baixo prestígio social do ensino e escassa possibilidade de carreira. Resultados idênticos no que respeita à França foram colhidos por R. BENJAMIM, L’ Univers des Instituteurs, Les Editions de Minuit, 1964.
[7] A Europa caracteriza-se na educação por um sistema de mobilidade cooptativa. Os alunos das classes inferiores são eliminados de diversas formas. O simples fato da escola, cujo recrutamento de alunos estrutura-se na classe média e alta, estar próxima à habitação do aluno, formar classes pequenas e possuir material didático, coloca os alunos das classes pobres em situação desvantajosa, como ponto de partida. Há uma escola média para a formação da classe dirigente e outra técnica sem possibilidade de chegar ao nível superior, para a classe operária. Isso foi teorizado por Giuseppe BOTAI, La Carta della Scuola, Milão, 1941, p. 28, ed. reformulada.
[8] Pré-requisitos necessários ao professor inglês do século XVIII: “Ele deve ser: 1) Membro da Igreja da Inglaterra, de vida austera, idade não inferior a 25 anos; 2) Dedicado à Santa Comunhão; 3) Capaz de autodomínio de si e das paixões; 4) De caráter submisso e conduta humilde; 5) possuir bom talento didático; 6) Bem informado dos princípios e fundamentos da religião cristã com capacidade para enunciá-los ante o ministro da paróquia ou ao Bispo mediante exame escrito; 7) Possuir boa caligrafia e sólidos fundamentos nas Matemáticas; 8) Membro de um família de ilibada conduta moral e 9) Contar com a aprovação do ministro da paróquia (sendo um fiel) antes de procurar autorização do Bispo.” A. TROPP, The School Teacher, Londres, Heinemann, 1957.
* MAUSS, M, Sociologie et Antropologie, Ed. PUF, França.
[9] Segundo o psicanalista Oto Fenichel – escotomizar significa não querer enxergar, não admitir, negar magicamente o real.
[10] D. MOTHÉ, Militant chez Renault, Ed. du Seuil, Paris, p. 10.
[11] “O uso contínuo do conceito do dom ou dos dotes intelectuais constitui um pretexto para desviar o discurso das causas sociais das menores possibilidades de instrução que têm na Alemanha os filhos de operários,remontando-as a pretensas causas naturais.” R.DAHRENDORF, Arbeitenkinder an deutschen Universitaten, (J. C. Mohr, Tubingen, 1965, p. 29)
[12] A insensibilidade ante a desigualdade social e seu papel no comportamento do aluno constitui também característica do ensino nos países desenvolvidos. Veja-se H. ULIBARRI, Teacher Awareness of Sociocultural Differences in Multicultural Classrooms, in E. T. Keach, R. Fulton, F. E. Gardner (eds.), Education and Social Crisis, Nova York, J. Willley, 1967, pp. 139-144.
[13] P. BOURDIEU, L’École Conservatrice”, p. 342, in Revue Française de Sociologie, VII, 1966, pp. 325-347.